Evangelho do velho chico

AutorNancy Nancy
Páginas110-111
EVANGELHO DO VELHO CHICO
Primeiro Testamento
No princípio era o Rio
e o Rio vinha de Deus
e sem ele nada vivia.
Quando o Rio descobriu seu curso
desenhou suas curvas e saliências assim...
séculos de aprendizagem e
constância de águas
pela fenda íntima da Canastra Opará.
O Rio nasce mineiro antes das Minas
e avança margeando
suas próprias margens
inventando sua geografia
recebendo interferências
de pedras, cerros e serras
e outros rios mais antigos que ele:
Paraopeba, Abaeté, Rio das Velhas,
Jequitaí, Paracatu, Rio Corrente,
Urucuia, Cariranha, Verde Grande.
Desvia, engana e rodeia,
insiste no percurso até se fazer baiano
antes da Bahia.
Acumula vestígios debruçando
sob seu leito lamas, areias e folhas
desesperadas por redemoinhos
da passagem.
Firme, o Rio sabe onde quer chegar
e empina seu fluxo dobrando a terra
com sua língua molhada
e lambe miudezas de animais
enormes nadadoras,
escamas luminosas, surubins,
jardins submersos de escuridão
e, em sua invenção persistente,
que não conhece dia ou noite
a não ser pelas histórias
que ele cospe na beira
de fantásticas memórias de
Pankararu, Atikum, Kimbiwa,
Truka, Kiriri, Tuxa e Pankarare
e nomear barcos, canoas,
embarcações, remos gentis
navegam conhecendo a correnteza
abrindo sulcos, garimpando lendas
esculpindo carrancas de renhidos dentes
o desconhecido.
O Rio dorme e com ele
e nele todos os seres dormem.
As águas têm sono leve
os afogados se aquietam e param de gritar
os peixes bóiam
e a cobra perde seu veneno
a mãe d’água aproveita o silêncio
para enxugar seus cabelos
e os barcos fingem que não existem mais
enquanto o Rio dorme.
O Rio míngua
finge que se esquece, deixa de correr
desbotando toda forma de vida
que não o conhecer.
Convive com todas as desistências
de climas e aridez
partilha do fracasso assíduo
da população da beira
ribeirinhos, quilombolas resistentes
e enfrenta ele mesmo sua imensidão
seu medo de morrer
e ressurge caudaloso aos poucos
em Bom Jesus da Lapa
tímida altivez
que engole águas improváveis
novíssimas de afluentes parcimosos
e generosos de umidade imensa
alma do sertão.
“Sabeis assim que sou pobre,
mãe e pai de todo o povo.”
O Rio cabeceia e vence
rompe em cheia e força
e despenca em cachos de espuma
pleno imenso glorioso
lânguido de indecisão
quer ser Pernambuco
sem deixar de ser Bahia
e arrisca o duplo
acostumando suas margens
a estar ao mesmo tempo
em mais de um lugar.
Tem pressa! Já pressente o mar
mas se atrasa em detalhes do contraditório
exercitando a aridez
com promessas de grão
e se deixa ficar em Cabrobó e Petrolina.
... E avança pelo fio tênue que inventou
Sergipe e Alagoas antes de existirem
e se atira em direção ao mar
abandonando sem querer

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