Eutanásia e direito à morte assistida: O que pensa a igreja católica?

AutorAstrid Heringer
CargoDoutoranda em<i> Nuevas Tendencias del Derecho Constitucional</i> pela Universidade de Salamanca, Espanha. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria. Professora do curso de graduação em Direito e dos cursos de pós-graduação lato sensu da Universidade Regional.
Páginas30-40

Page 30

“Desta vida, você não conhece nem o sentido nem o fim porque acaba com a morte que não desvela seu mistério. Nesta situação você enfrenta a alternativa: ou o Nada ou Deus que permite uma outra vida, eterna. Tem-se de optar de qualquer maneira, porque não escolher é optar pelo nada e você perde tudo; se opta por Deus, você arrisca ganhar tudo e, se perder, não perde nada na realidade, porque tudo já está perdido.” PASCAL

Introdução

A motivação para escrever sobre eutanásia e cristianismo encontra abrigo no fato de que são assuntos enfrentados pela bioética como essenciais no avanço do tema. Ou seja, o avanço da bioética e de seu próprio entendimento é barrado pelas concepções religiosas, mais acentuadas quando o assunto a ser discutido é a eutanásia ou direito à morte assistida. Segundo Hans Kung2, as religiões são todas as mensagens de salvação que procuram responder às eternas dúvidas das pessoas, que maculam nossos sentimentos mais íntimos, tais como o sofrimento, dor, amor, culpa, vida e morte. Todas as religiões procuram trazer alguma resposta que gerem consolo ou conformismo para os nossos sentimentos e dúvidas.

Assim é a Filosofia, que também procura dar respostas às dúvidas humanas. No entanto, as religiões podem fazê-lo com maior eficácia, pois além das regras de conduta e convivência, possuem figuras que foram exemplo de retidão de caráter e, portanto, modelos a serem seguidos, tais como Jesus para o cristianismo.

1 O valor da vida para o cristianismo

“Para tudo tem um tempo certo. Tempo para nascer e tempo para morrer.” Eclesiastes.

Para o cristianismo, a vida tem um valor quase que absoluto, no sentido de que Deus autoriza a vida e também pode retirá-la.

O valor da vida existente no cristianismo também passou a fazer parte da ciência, inclusive no juramento feito por todos os médicos que, ainda nos dias de hoje, comprometem-se a zelar pela vida, obrigando-se a não aceitar reclamos para a indução de medicamentos mortais nem realizá-la indevidamente. Eis as palavras do juramento de Hipócrates: “Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva”.

A irrenunciabilidade do direito à vida também está presente nas declarações de direitos. A Declaração dos Direitos Humanos contrapõe-se à licitude de manipulação de um direito sobre a vida das pessoas, com a finalidade de autorizar as pessoas a praticarem atos de disposição do corpo e da própria vida, de escolher quando e como morrer. Segundo Hildegard Taggesell Giostri, a vida é de disposição única do Estado, um patrimônio deste, e ao Estado cabe a tarefa de zelar por essa vida, mesmo que paradoxalmente possa dispor dela, se preciso for, em caso de guerra3.

Page 31

Na defesa da vida, a Igreja Católica tem condenado a prática do homicídio e do suicídio, baseando-se em três razões fundamentais. São elas:

  1. El suicidio va contra la inclinación natural y la caridad hacia uno mismo: la existencia del instinto de conservación, dentro de su fundamentación naturalista de la moral, pone los cimientos de la obligación moral de conservar la ida y no atentar contra ella. Esta inclinación o instinto no es sólo una ley biológica, sino que en su existencia – que también se da en los animales – la razón humana percibe el motivo para amarse a sí mismo y su ordenación hacia Dios: “Matarse a si mismo va contra la caridad, según la cual cada uno debe amarse a sí mismo …”

  2. El suicidio atenta contra las obligaciones que le ser humano tiene para con la sociedad: es un argumento de Santo Tomás, inspirado en Aristóteles: “El que se mata a si mismo, hace algo injusto. Pero es necesario considerar a quién hace priva un ciudadano …”. “Toda parte pertenece al todo. Todo hombre es parte de la comunidad. Por lo cual, en el hecho mismo de matarse, procura un daño a la sociedad.”

  3. La práctica suicida viola los derechos de Dios: “El paso de esta vida a la otra más feliz no depende del libre arbitrio del hombre, sino de la potestad divina. Y, por eso, no lícito al hombre matarse a sí mismo para pasar a la vida más feliz.”4

Mas há algumas exceções a estes princípios, em que se poderia tirar a vida de alguém. São elas, a legítima defesa, a pena de morte e a guerra justa. Elas são acrescentadas pela moral casuística, que são:

- o aborto indireto, como conseqüência da aplicação do princípio do duplo

- o suicídio indireto ou, posteriormente, a eutanásia, em virtude do mesmo efeito; princípio;

- a legítima defesa, que pressupõe a morte do agressor;

- a pena de morte, admitida geralmente pela mesma moral;

- a morte de inimigo em guerra justa;

- a morte do tirano.5

Então vê-se que a vida tem um valor sagrado para o cristianismo, bem como para muitas outras religiões, mesmo que haja algumas exceções justificadas. Esse valor sagrado também influenciou a declaração de Direitos Humanos e até a ciência como se viu na declaração de Hipócrates.

Page 32

2 O medo da morte, o mal e o sofrimento

“Deus ou quer eliminar os males e não pode, ou pode e não quer, ou nem quer nem pode. Se ele quer e não pode, é impotente, mas isso não pode acontecer a Deus. Se pode e não quer, é invejoso, e isto também não convém a Deus. Se nem quer nem pode, é invejoso e impotente e por isso nem é Deus. Se quer e pode – apenas isso convém a Deus -, donde vêm os males e por que Deus não os elimina.” (Epicuro6)

A valorização da vida, dada pelo cristianismo, está presente tanto num aspecto positivo, quanto em sentido negativo. O aspecto positivo se vincula à conservação da vida em toda e qualquer circunstância, abrindo-se somente algumas exceções. A base para esse discurso está em que somente cabe a Deus dar a vida e também só a Ele cabe retirar, aí se reduzindo o valor negativo. Ou seja, o ato de dar a morte também é competência divina, não se atribuindo ao homem o poder de livremente eleger esse momento, nem tampouco retirar a vida de outra pessoa injustamente. E isso se aplica hodiernamente para as situações de aborto e à eutanásia.

Passamos a maior parte da vida com medo da morte que é um sentimento que as pessoas dificilmente suportam. Estamos consciente ou inconscientemente tentando afastá-lo da mente, “vivemos uma vida na qual a morte é negada”7. Isso significa que, “a despeito de tudo o que se diz, continuamos a viver, deixando de lado a questão da nossa mortalidade. Negar a morte significa jamais permitir a nós mesmos o confronto com a ansiedade provocada por visões dessa última separação”8.

O cristianismo infligiu, assim como outros cultos, o medo da morte e a submissão da pessoa aos desígnios de Deus quanto a esse momento. Esse medo advém da separação feita pelo cristianismo entre pecadores e não pecadores, e conseqüentemente a destinação da alma do homem para o céu ou para o inferno. Aos mais abastados ainda era possível comprar um espaço no céu, o que aliviava a sua culpa e os redimia dos pecados cometidos na Terra.

Nessa direção, afirma Corrêa que “com o advento do cristianismo estabeleceu-se uma familiaridade com a morte. Ninguém morre sem ser advertido, seja por signos naturais, seja por uma convicção íntima. Tem-se medo de morrer sem receber algum aviso, pois, para os novos seguidores de Cristo, importam ao mesmo tempo, tanto lamentar a vida que se vai quanto pedir perdão aos companheiros, sobretudo os que rodeiam o leito do moribundo. Depois de pedir perdão por seus erros e faltas é preciso se reconciliar com Deus ou, como se dizia, ‘encomendar sua alma’”.9

Page 33

Em que pese às manifestações religiosas sobre o assunto, é importante também observar o fenômeno morte sob o olhar da ciência. Jacques Pohier pretende humanizar a morte, evitando que seja transformada em algo muito além da nossa própria imaginação e colocando-a como algo natural, fazendo parte de nossa existência: “manifesta querer humanizar mais a violência que se chama morte, isto é, humanizar a vida até a morte inclusivamente”10.

3 A vida e sua disposição: entre o dever de cuidado e a proporcionalidade da ação

Em que pese ao pensamento dominante de que, sob o ponto de vista religioso, a eutanásia, e todas as suas variantes, seriam eticamente condenáveis, existem opiniões que demonstram um pensamento contrário e o fundamentam com argumentos que não podem ser desconhecidos.

O desfecho para tal interpretação decorre do crescente aumento dos meios que estão à disposição da medicina para evitar a morte. A moderna aparelhagem utilizada, tais como respiradores artificiais, medicamentos para minimizar ou evitar a dor, dentre outros, podem ser meios desejáveis para o enfermo, mas desde que haja uma certa “proporcionalidade”11. Em que medida “vale a pena”12 a aplicação dos chamados meios extraordinários para evitar a morte?

A chamada obstinación terapéutica, encarnizamiento terapéutico ou fúria terapêutica, tem levado os médicos a prolongar cada vez mais a vida do paciente que está em agonia, “mas também é provável...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT