Sobre como eu me tornei um jurista negro

AutorAdilson José Moreira
Páginas43-73
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CAPÍTULO I
SOBRE COMO EU ME TORNEI UM
JURISTA NEGRO
Não sei exatamente quando descobri que sou uma pessoa negra.
Não creio que seja possível indicar o momento exato no qual isso
aconteceu, porque esse é um processo no qual não somos sujeitos ativos.
A construção da identidade negra não é algo sobre o qual temos controle
completo porque é em grande parte uma atribuição: ela é amplamente
construída por outros, ela é imposta de fora para dentro, o que a torna
uma identidade capturada. Nós negros nascemos inseridos dentro de um
campo de significações que existia muito antes do nosso nascimento. É
claro que essa descoberta está relacionada com o fato de que a negritude
é socialmente construída como algo muito negativo. Sempre tive a
consciência de que estava sendo classificado por pessoas brancas, sempre
tive a impressão de estar dentro de um processo de dissociação cognitiva
por causa da distância entre minha consciência como um indivíduo e as
expectativas que as pessoas brancas carregam de mim, mesmo sem me
conhecerem. Sempre tive essa sensação de que estou circulando entre
representações sociais que não correspondem ao que realmente sou.
Sempre tive a impressão de que não estou em lugar algum, de que não
existo em lugar algum, de que não sou realmente uma pessoa, mas uma
mera representação social que não tenho como transformar.
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ADILSON JOSÉ MOREIRA
Essa experiência tem início ainda na infância, quando você tenta
compreender quais são os motivos pelos quais os brancos te tratam de
maneira distinta. Você vai para a escola, encontra um novo universo de
pessoas, você faz um esforço para mostrar que tem qualidades, que você
pode ser um bom amigo, mas elas não estão interessadas em te conhecer.
Elas já sabem tudo sobre você no momento em que te olham. Eu entrava
na sala de aula e elas franziam a testa na mesma hora, algumas pediam à
professora para sentar em outro lugar. Eu procurava me certificar de que
não havia nada de errado comigo; minha mãe sempre se preocupava
obsessivamente com nossa aparência e cuidados pessoais. Sempre ficava
muito intrigado porque não conseguia entender a razão de tamanha
hostilidade. Eu simplesmente assumia que todas as crianças eram iguais
a mim, queriam interagir, brincar e fazer novos amigos. Não poderia
estar mais equivocado.
Creio que as pessoas negras começam a ter consciência de que
elas não são vistas como seres humanos quando ouvem a palavra “preto”
pela primeira vez. Eu reagia com muita raiva quando meninos brancos
e meninas brancas me chamavam dessa maneira. Aquele tratamento me
ofendia porque aquele não era o meu nome. Também não gostava
daquilo porque meus familiares tinham a mesma cor da pele e todos
eram pessoas que eu amava, pessoas que não poderiam corresponder ao
que aquela palavra expressava. Esse é um momento importante porque
você tenta saber qual é o significado dessa palavra. Você pergunta aos
seus pais porque as pessoas estão te chamando dessa maneira e eles te
mencionam outra palavra que você também não conhece: racismo. Você
então entende que as pessoas já sabem quem você é, embora elas nunca
tenham conversado contigo. Essas duas palavras começam a fazer parte
do seu campo de significações e você faz um esforço para entender porque
as pessoas não querem ter qualquer tipo de contato. Sua raça o coloca
em uma situação de isolamento social imediato quando você está em
um ambiente branco. As coisas ficam ainda mais complicadas porque
você está ciente de que aquelas ideias não te representam e você começa
a fazer todo o possível para convencer as pessoas de que você não é o
que elas estão pensando. É preciso então fazer algo para mostrar aos
indivíduos que você é um ser humano e não uma representação que só

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