Eu Não Quero Saber! Uma Defesa do Direito de Não Saber Como Independente do Direito à Privacidade

AutorLucas Miotto Lopes
CargoUniversity of Edinburgh; Edimburgo, Escócia
Páginas82-97
Eu Não Quero Saber! Uma Defesa do Direito
de Não Saber Como Independente do
Direito à Privacidade
Lucas Miotto Lopes*
University of Edinburgh; Edimburgo, Escócia
1. Introdução
Em 2011 o Superior Tribunal de Justiça julgou um curioso caso de danos
morais1. Fernando Villas Boas, a pedido de seu médico, realizou exames no
hospital Albert Einstein em São Paulo, entre eles o Colesterol, Triglicérides
e o anti-HCV (exame para a investigação de Hepatite C). Ao divulgar os
resultados, o hospital informou a Fernando, e somente a ele, o resultado de
exame diverso do solicitado por seu médico: em vez de informar o resulta-
do do exame anti-HCV, informou o de exame anti-HIV, no qual constatou
que Fernando era soropositivo. Em virtude disso, Fernando ingressou com
uma ação de danos morais e materiais (que após os recursos chegou ao
STJ) alegando que o hospital, ao divulgar o resultado de exame diverso
do solicitado, violou o seu direito de “não ter o conhecimento da sua real
situação de saúde”2.
1 RESP 1.195.995.
2 MULLHOLAND, 2012, p.1.
Direito, Estado e Sociedade n.45 p. 82 a 97 jul/dez 2014
* Doutorando em Teoria do Direito pela University of Edinburgh. Mestre em Teoria do Estado e Direito
Constitucional pela PUC-Rio. Barachel em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto. Contato:
l.miotto-lopes@sms.ed.ac.uk.
Agradeço à Caitlin Mullholand e Fábio Leite pelas discussões sobre o tema que inspiraram a elaboração
deste artigo. Também agradeço ao Matheus Silva, Fábio Shecaira, Pedro Chrismann e Marcelo Brando
por terem feito comentários escritos em versões anteriores do texto e aos comentários feitos pelos
pareceristas anônimos.
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Apesar de Fernando não ter sido bem sucedido na ação, o caso levantou
questões teóricas pertinentes quanto ao escopo do direito à privacidade e
quanto à suposta existência de um novo direito, nomeadamente, o direi-
to de não saber. Algumas dessas questões foram abordadas por Caitlin
Mullholand no artigo intitulado “O direito de Não Saber como Decorrência
do Direito à Intimidade” no qual defende uma concepção mais ampliada do
direito à privacidade que abarcaria o direito de não saber.
Neste artigo pretendo me opor a alguns dos argumentos da autora em
favor da ampliação do direito à privacidade e defender que a existência do
direito de não saber depende de algumas qualif‌icações. No entanto, não
pretendo discutir os aspectos jurídicos do caso citado, tais como o nexo de
causalidade e a adequação da decisão em relação aos danos morais. Meu
foco é investigar as bases teóricas do suposto direito de não saber, portanto
este é um trabalho de teoria do direito e f‌ilosof‌ia moral e não uma análise
jurídica pormenorizada. Sigo a seguinte estrutura: na seção (2) faço uma
análise do direito à privacidade para, na seção (3), distingui-lo do direito
de não saber. Defendo que há duas razões para distinguir o direito de não
saber do direito à privacidade: a sua direção da informação é distinta da do
direito à privacidade e o seu âmbito é maior que o do direito à privacidade.
Também faço algumas qualif‌icações do direito de não saber e discuto es-
parsamente o caso julgado pelo STJ para analisar a plausibilidade de alguns
argumentos favoráveis e desfavoráveis à existência e aplicação do direito de
não saber.
2. O Direito à Privacidade: o valor protegido e a direção da informação
O direito à privacidade intuitivamente parece referir a um certo espaço
exclusivo que possuímos em relação ao qual decidimos quem pode ou não
ter acesso a ele e ao que lá se encontra. É claro que esse é um modo muito
rudimentar de caracterizar o direito à privacidade, mas ainda assim pare-
ce captar alguns aspectos importantes que merecem um desenvolvimento
mais cuidadoso.
O primeiro aspecto relevante é que o direito à privacidade parece
envolver certo espaço exclusivo que possuímos. Essa af‌irmação pode ser
interpretada de algumas formas diferentes. A primeira forma de interpre-
tar essa af‌irmação é a de que ela se refere a algum espaço físico exclusivo
que possuímos. O problema dessa interpretação é que é muito fácil achar
Eu não quero Saber! Uma defesa do direito de não saber
como independente do direito à privacidade

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