Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de humphry primatt

AutorSônia T. Felipe
CargoProfessora do Departamento Filosofia da UFSC
Páginas207-229

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I - Notas históricas

Em 1776, ano em que os norte-americanos proclamam a igualdade e a liberdade como princípios norteadores da ordem política em seu país, e declaram que o poder do Estado e interesses privados não devem ser colocados acima do direito de cada homem à vida, à liberdade, e à autodeterminação na busca da própria felicidade, Humphry Primatt,1na Inglaterra, escreve o livro, A Dissertation on the Duty of Mercy and the Sin of Cruelty against Brute Animals (Dissertação sobre o dever de compaixão e o pecado da crueldade contra os animais brutos).

Em 1789, na Inglaterra, o filósofo moral e do direito, Jeremy Bentham escreve, An Introduction to the Principles of Morals and Legislation (Uma introdução aos princípios das morais e da legislação). Nessa obra, concluída mas não publicada por Bentham desde 1780, as teses centrais de Primatt são retomadas, numa extensa nota de rodapé, conhecida ao redor do mundo por todos os que lêem Ética Prática, de Peter Singer.

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Bentham defende, com a mesma inspiração e lógica do texto de Primatt, mas sem o citar, a tese de que a ética não será refinada o bastante, enquanto o ser humano não estender a aplicação do princípio da igualdade na consideração moral, a todos os seres dotados de sensibilidade, capazes de sofrer.

Bentham, analogamente a Primatt, não se refere a direitos dos animais, mas ao dever humano de compaixão para com todos os seres em condições vulneráveis à dor e ao sofrimento. Ambos exigem coerência, do sujeito moral. Devemos respeitar em relação aos outros, os mesmos padrões que exigimos sejam aplicados em relação a nós. Se argumentamos que ninguém, para levar vantagens, tem o direito de nos expropriar de nosso bem-estar ou da nossa vida, não devemos, em nome de vantagens pessoais, tirar a vida nem maltratar nenhum outro animal dotado de sensibilidade.

Em 1824, o reverendo Arthur Broome, inspirado nos argumentos de Humphry Primatt, funda a RSPCA, Sociedade Real de Prevenção à Crueldade contra Animais, e publica, em 1831, uma versão resumida de, The Duty of Mercy, de Primatt. Em 1834, houve ainda uma edição do texto completo de Humphry Primatt, que permaneceu ignorada pela comunidade acadêmica filosófica até 1892, quando Henry Salt, de quem Gandhi tornou-se amigo e admirador confesso, no tempo em que estudou em Londres,2escreveu Animal Rights. Assim, o termo direitos foi impresso, pela primeira vez na história da filosofia européia, na capa de um livro em defesa dos animais.3Mesmo não tendo, nem Primatt, nem Bentham, no final do século XVIII, defendido explicitamente que animais têm ou devam ter direitos, seus argumentos, elaborados para fundamentar a tese de que os seres humanos têm deveres morais relevantes para com os animais, permitiram a Henry Salt, no final do século XIX, e ao teólogo britânico, Andrew Linzey,4no final do século XX, escrever livros, cujos títulos defendem direitos, para os animais.

Num apêndice de, Animal Rights, Henry Salt edita passagens do texto original de Humphry Primatt,5cuja última edição havia sido feita em 1834. Assim, transmite aos filósofos de Oxford, iniciadores do movimento ético de defesa da libertação dos animais, na década de 70, do século XX (Peter Singer, Richard D. Ryder, Andrew Linzey e, mais tarde, Tom Regan), partes da argumentação ética em defesa dos animais, elaborada por Primatt em 1776.

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O livro de Henry Salt, Animal Rights, de 1892, foi re-editado em 1980, com prefácio de Peter Singer. Não fosse essa edição, não teríamos sabido sequer da existência do texto antigo, de Humphry Primatt. Os caminhos de defesa ética, moral, política e jurídica dos animais são tortuosos, porque a moralidade vigente, milenar, não admite reconsiderar privilégios, quando esses favorecem uma classe seleta de humanos.

Esse resumo da história da filosofia, recorta algo que interessa a todos os defensores dos animais e a todos os que, mesmo não tendo despertado para a necessidade de rever os padrões morais do tratamento destinado aos animais, não estão contentes com a moral tradicional que nos foi legada, cheia de preconceitos e discriminações: racismo,6sexismo,7machismo,8elitismo,9geracionismo,10e especismo11 .

A obra de Humphry Primatt, The Duty of Mercy, ficou esgotada até 1992, cem anos depois de Henry Salt ter editado pequenos trechos dela, em seu próprio livro. Richard D. Ryder conheceu o texto de Primatt, em 1976, pela primeira vez, ao fazer uma pesquisa sobre a defesa dos animais na história inglesa, na Biblioteca Bodlein, de Oxford. Re-editou-o, com pequenas revisões ortográficas, facilitando a leitura aos não afeiçoados ao modo setecentista da escrita inglesa. A edição de 1992, esgotouse. Durante cinco anos a busquei em todos os sites de livros esgotados e de segunda

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mão, até conseguir um exemplar, usado para a pesquisa que resultou no presente artigo.

O livro de Primatt pode estar esgotado, pois são milhões de defensores de animais espalhados hoje ao redor do mundo, ansiosos por conhecer seus argumentos. Mas, não se esgotarão jamais os argumentos e teses aí defendidos sobre The Duty of Mercy (O dever de compaixão), relativamente aos animais. Pelo contrário, as teses de Primatt fundamentam os discursos éticos contemporâneos, na defesa moral, legal e constitucional dos animais, razão pela qual as introduzo, no Brasil, nesse artigo.

II - O legado de humphry primatt

Peter Singer, em Ética Prática, ao defender que os animais dotados de sensibilidade e consciência, animais sencientes, sejam tratados com o mesmo padrão de respeito dispensado à dor e ao sofrimento de seres da nossa espécie, propõe a expansão do círculo da moralidade para incluir interesses até então considerados exclusivos dos membros da espécie humana. O princípio da igual consideração de interesses semelhantes, proposto por Peter Singer, funda-se sobre o argumento de que as diferenças na aparência são irrelevantes à experiência da dor, como algo intrinsecamente mau para quem a sofre. Essa é a tese central de Primatt.

Tom Regan, em The Case for Animal Rights (A questão dos direitos animais), ao propor que todos os animais sujeitos-de-uma-vida sejam reconhecidos como sujeitos de valor inerente, e, por essa razão, incluídos no âmbito da consideração moral, também assume a posição de Primatt. Este afirma que, para além da aparência exterior ou da configuração biológica do animal humano e não-humano, há interesses comuns a todas as espécies animais, que a ética não pode discriminar.

Richard D. Ryder, por sua vez, autor do conceito especismo, com o qual designa a prática humana de discriminar a dor e o sofrimento dos animais, pelo fato de não terem nascido com a configuração biológica da espécie humana, enfatiza a tese central de Primatt, de que "dor é dor", não importa quem a sinta. A natureza da dor, inevitavelmente, para o sujeito dorente ou sofrente (dois termos criados por Ryder), é má. Ryder reafirma, em Political Animal, a necessidade de se estabelecer deveres morais negativos, de não-maleficência, para os humanos, para contemplar os interesses de sujeitos dorentes, não-humanos. Nessa perspectiva, em vez de se continuar a defender uma liberdade ilimitada, para os humanos, de tratar animais como se fossem coisas, das quais podem apropriar-se e dispor, deve-se estabelecer limites à liberdade dos seres humanos, impondo-lhes tantas restrições quantas forem necessárias à proteção da vida, da integridade física e emocional, e do direito de mover-se para prover-se com bem-estar no ambiente natural e social, de cada espécie animal.

O dever de não-maleficência, sustentado no princípio da dorência, exposto por Primatt em 1776, e adotado por Ryder em 1998, está fundado nos mesmos princípios reconhecidos pela obrigação de respeito a humanos: à diferença, à igualdade, à justiça e à coerência.

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Humphr y Primatt critica a moralidade antropocêntrica, egoísta e discriminadora, e propõe o emprego do princípio da igualdade moral no tratamento da dor e minimização do sofrimento de todos os seres.

III - Teses de Humphry Primatt, Apresentadas em the duty of mercy12
  1. tese: A concepção da dignidade humana está fundada erroneamente numa presunção de superioridade discriminadora contra quem não têm a configuração da espécie humana.

    Devido a seu hábito de discriminar tudo o que é singular, o ser humano convence-se a si mesmo, e aos demais, de que "... o homem, entre todos os animais da terra, é o único sujeito digno de compaixão e piedade, por ser o mais bem dotado e distinto."13Primatt inicia seu texto com a mais brilhante constatação sobre a tradição moral especista, na qual temos sido educados há mais de dois mil anos, passagem tão lucidamente escrita que vale para diagnosticar o viés discriminador especista da cultura contemporânea. Assim o constata: "...Desviados por esse preconceito, construído a nosso favor, ignoramos alguns animais,14como se fossem meras excrescências da natureza, aquém de nossa atenção, e infinitamente não dignos de cuidado e reconhecimento divinos; outros, consideramos como se feitos apenas para nos prestar serviços; e, por poder usá-los, somos indiferentes e descuidados com relação à sua felicidade ou miséria, e com muita dificuldade nos permitimos supor que exista qualquer dever que nos obrigue em relação a eles."152.ª tese: A tradição nem sempre preserva um valor moral universal, ou é sinônimo de ética.

    Conforme a tradição, não havia uma lei sequer de proteção aos animais, na Inglaterra, quando Primatt escreve seu texto.16Referindo-se à indiferença das

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    autoridades, responsáveis pelo exemplo de virtude que a tradição deveria dar, mas nem sempre o faz, Primatt reconhece que os dois conceitos, o de tradição e o de ética, não necessariamente estão relacionados. A tradição pode ser a mais viva expressão de...

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