Estudo comparado da arbitragem no mercado de capitais

AutorDaniel de Andrade Lévy
Páginas275-300

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I - Introdução

Quando falham os mecanismos de regulação prudencial do mercado de capitais, é quase certo o surgimento de um desequilíbrio, que culmina no descasamento de operações imaginadas para se anular sob uma perspectiva micro, e gerarem riqueza, sob uma perspectiva macro. O mercado de capitais, por essa razão, é um dos campos mais propício a tais abalos cíclicos, cujas consequências, em última instância, abalam a sua credibilidade, e afetam o potencial de canalização da poupança popular. Sob essa ótica, se a regulação preventiva é indispensável, a recomposição do equilíbrio é crucial.

A arbitragem1 aparece como instrumento cada vez mais legitimado para uma resolução das controvérsias que atenda às exigências próprias do mercado de capitais, cujas características são incompatíveis com a atual configuração de nosso Poder Judiciário. Pesquisa realizada há dois anos, em conjunto pela PriceWaterHouse--Coopers. e pela Queen Mary University, de Londres,2 revela que, em 2008, 88% das companhias sondadas preferem a arbitragem, em relação ao contencioso judicial,

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para a resolução de suas controvérsias (contra 73%, em 2007), bem como 92% das disputas acabam resolvidas durante o respectivo procedimento.

Outra pesquisa, em 2003, da American Arbitration Association ("AAA"),3 mostra que 35% das empresas americanas analisadas são extremamente adeptas às ADRs (alternative dispute resolutions, que reúnem os meios alternativos de resolução de conflitos, como a arbitragem, a mediação, a opinião de terceiro, etc.), e apontam, como principais vantagens, a redução dos custos dos serviços jurídicos, a economia de tempo e a melhor utilização dos recursos financeiros.

No Brasil, embora a arbitragem já tenha sido historicamente prevista como meio até mesmo obrigatório de resolução de conflitos societários,4 foi só em 1996, com a promulgação da Lei 9.307, que o instituto ganhou verdadeiro foro de legalidade. Legalidade, mas não legitimidade, diante dos inúmeros questionamentos doutrinários e jurisprudenciais acerca da constitucionalidade de uma norma que previa a possibilidade de um afastamento convencional da apreciação do Poder Judiciário acerca de determinadas lesões ou ameaças de lesões, em aparente violação do ditame constitucional.5

A superação desse bloqueio veio em 2001, quando o Supremo Tribunal Federal, ao examinar a Sentença Estrangeira Contestada n. 5.206,6 declarou a constitucionalidade da lei, na linha do paradigmático parecer do então Procurador-Geral da República, Geraldo Brindeiro, cujo trecho se transcreve: "O que o princípio da inafasta-bilidade do controle jurisdicional estabelece é que: 'a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a Direito'. Não estabelece que as partes interessadas não excluirão da apreciação judicial suas questões ou conflitos. Não determina que os interessados deverão sempre levar ao Judiciário suas demandas".

A declaração de constitucionalidade da norma fez surgir a áurea de legitimidade necessária à adoção desse método de superação de controvérsias, sem prejuízo da correspondente segurança jurídica, talvez o valor mais ancorado nas relações de confiança e credibilidade do mercado de capitais.

Mesmo antes de 2001, a Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa), por meio de sua Resolução 264, de 2000, previu a adoção obrigatória da arbitragem pelas companhias que aderissem ao Nível 2 e ao Nível "Novo Mercado" de governança corporativa, o que se verá com mais detalhe a seguir. Em 2001,7 foi promulgada a Lei 10.303 que, ao catalisar para a Lei de Sociedades por Ações ("LSA") os novos valores da governança corporativa, introdu-

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ziu o § 3o ao art. 109, prevendo, de forma expressa e explícita, a possibilidade de escolha da arbitragem para a resolução dos conflitos societários.

Aqui, vale destacar premissa metodológica bastante interessante, destacada em artigo de Haroldo Verçosa,8 onde indaga se a inserção daquele parágrafo na Lei n. 6.404/1976 teria engendrado um micros-sistema autônomo de arbitragem societária, ou bem se a arbitragem societária permaneceria subordinada aos limites gerais da Lei 9.307/1996, sobretudo quanto aos direitos arbitráveis, previstos em seu art. 1° ("patrimoniais disponíveis"). Conclui, com tese que endossamos, que os limites da Lei 9.307/1996 permanecem também para as disputas societárias, com a integração dessa norma com a Lei das Sociedades por Ações. Aprevisão do art. 109, § 3o, daLSA, apenas tornou expressa uma faculdade que já era implícita, de forma a divulgar e propagar a adoção da arbitragem no âmbito societário.

Aponte-se também o Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa, do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa, cuja última edição, de 2009, estimula a opção pela arbitragem,9 assim como a Cartilha de Governança Corporativa, da Comissão de Valores Mobiliários, de 2002, que também se insere nessa trilha.10 A arbitragem ganhou foros de nor-malidade e legitimidade como instrumento de resolução de conflitos no mercado de capitais; mais do que isso, é recomendada e estimulada pelos seus principais autores.

O que talvez ainda falte entre nós é a crença na arbitragem, cultura que se destaca no cumprimento dos laudos, na aceitação da sucumbência e na reserva das ações de anulações apenas aos casos que exigem tal medida. Nessa conjuntura, nenhum dispositivo é tão significativo quanto o art. 13.5, do Regulamento da Câmara de Arbitragem do Mercado ("CAM"),11 que prevê a comunicação ao mercado de eventual descumprimento do laudo arbitral, com a exclusão dos "bad players", ideia já bem disseminada na arbitragem internacional, sobretudo em matéria de investimento.12

O mercado de capitais parece o terreno ideal para o fomento dessa cultura, não apenas porque as suas relações negociais desenvolvem-se conforme um padrão de comportamento tipicamente cultural, mas porque a arbitragem fornece a configuração ideal para o seu desenvolvimento. Dentre esses parâmetros, destaque-se a celeridade - tão propícia à vida negocial - a confiden-cialidade - necessária à preservação da concorrência e dos interesses dos próprios acionistas - a especialização de seus julgadores13 - retratada em decisões técnicas, e contrárias ao princípio de generalização do Poder Judiciário - e a possibilidade de lidar

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com muito maior eficácia com a multiplicidade de atores presentes no mercado de capitais, cujos litisconsórcios multitudinários acabam, quase sempre, engessando a demanda judicial.

Não por outro motivo, o crescimento da arbitragem no mercado de capitais é constatação indiscutível, no Brasil, e no mundo. Todavia, o procedimento arbitral traz uma liberdade particular para um campo no qual o interesse público não pode ser ignorado, refletido na proteção ao investidor, norte de sua estrutura regulatória. Como compatibilizar essas duas visões é o que tentaremos explorar neste breve texto.

II - As câmaras setoriais de arbitragem no mercado de capitais

O desenvolvimento de praças de negociação cada vez mais especializadas em determinadas mercadorias resultou no implemento de câmaras arbitrais próprias, sob o argumento da tecnicidade de suas decisões. A Bovespa, no Brasil, a NASD, a NYSE, a Chicago Stock Exchange, nos EUA, a International Cotton Association, no Reino Unido, a Frankfurt Stock Exchange, na Alemanha, entre tantas, criaram câmaras próprias para arbitrar as controvérsias surgidas entre os seus participantes. Logo, primeiro ponto que vale examinar no âmbito do mercado de capitais, é o conjunto de regras que justificam a existência dessas câmaras setoriais, bem como a sua efetividade, assim como a validade de impor aos participantes desses mercados a administração de suas contendas por tais entidades.

  1. A Câmara de Arbitragem do Mercado ("CAM") da BM&F-Bovespa

    A Câmara de Arbitragem do Mercado foi criada pela Bovespa em 2001, a fim de acolher as arbitragens oriundas das companhias que aderissem às novas regras de governança corporativa do Nível 2 e do Novo

    Mercado. O Regulamento do Nível 2 estabeleceu, em seu art. 13.1, a obrigação geral das companhias listadas no Nível 2, da BM&F-Bovespa, de seus acionistas controladores, administradores e fiscais, de resolverem as suas disputas por meio de arbitragem, perante a CAM, controvérsias essas oriundas do Regulamento de Listagem, do Contrato de Adoção de Práticas Diferenciadas de Governança Corporativa Nível 2, das Cláusulas Compromissórias, em especial, quanto à sua aplicação, validade, eficácia, interpretação, violação e efeitos.14

    Mutatis mutandis, essas regras são também previstas no Regulamento do Novo Mercado, onde o art. 13.115 prevê a obriga-

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    ção geral de submeter os litígios que envolvem os seus participantes ao procedimento da CAM, nos mesmos moldes do Regulamento do Nível 2.

    Ambos os Regulamentos determinam que as controvérsias envolvendo os seus participantes sejam dirimidas pela câmara que o próprio mercado instituiu. Não é o nosso objetivo esmiuçar as normas desse instrumento, bastante completo, mas observar quais são os dispositivos que vieram propor soluções para os principais pontos polêmicos da arbitragem no mercado de capitais.

    O tratamento oferecido pelo Regulamento da CAM à problemática da extensão subjetiva da cláusula compromissória inserida no estatuto da companhia foi das mais importantes contribuições para o debate.

    Ao apontar a finalidade do Regulamento, o art. 1.2 indica que os seus destinatários serão os "Participantes dos Segmentos Especiais de Listagem da Boves-pa”, e remete ao art. 2.1 para a sua caracterização: (i) aBovespa, (ii) as Companhias, (iii) os...

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