Estrutura obrigacional do contrato de prestação de serviço de Arquitetura

AutorJosé Roberto Fernandes Castilho
Páginas219-247

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(...) Sus obligaciones vendrán determinadas por lo dispuesto en esta Ley y demás disposiciones que sean de aplicación y por el contrato que origina su intervención.

Art. 8 da Lei espanhola 38/99, de Ordenación de la Edificación

I Introdução

Como observava o civilista Caio Mário da Silva Pereira há meio século, o mundo moderno é o mundo do contrato, uma vez que todas as pessoas indistintamente pactuam e fazem ajustes entre si a todo momento. Do ponto de vista jurídico, o profissional da Arquitetura e do Urbanismo desenvolve sua atividade profissional, de cunho marcadamente intelectual, mediante o estabelecimento de contratos de prestação de serviço (às vezes identificado erroneamente com o “contrato de projeto”), que apresenta certas peculiaridades que serão aqui destacadas. No modelo clássico do mercado de trabalho, este é o tipo de vínculo que o une aos contratantes, gerador de direitos e de obrigações visto tratar-se de contrato de bilateralidade explícita: o desenvolvimento da atividade profissional do arquiteto dá-se em troca

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de retribuição econômica que são os honorários profissionais – as duas partes são, entre si, credores e devedores de diferentes prestações.

Acordo livre de vontades, o contrato é a fonte principal das relações obrigacionais, vínculo jurídico que une dois sujeitos de direito. Mas, no caso específico, não há possibilidade legal de se contratar um fazer arquitetural se num dos polos da relação não estiver presente um arquiteto ou uma sociedade de arquitetos. Subjetivamente, pois, o contrato de prestação de serviço de Arquitetura pressupõe (i) um arquiteto trabalhador autônomo, que recente lei espanhola define: “las personas físicas que realicen de forma habitual, personal, directa, por cuenta propia y fuera del ámbito de dirección y organización de otra persona, una actividad económica o profesional a título lucrativo” (Ley 20/2007, de 11 de julho, “Estatuto del trabajo autónomo”, art. 1º/1) ou (ii) uma sociedade simples de prestação de serviço de Arquitetura e Urbanismo constituída na forma da lei (v. arts. 10 e 11 da lei do CAU), que são os escritórios reunindo vários profissionais associados (sociedade uniprofissional). Por força da avença, uns e outros serão, portanto, contribuintes do Imposto Sobre Serviços – ISS, tributo de competência municipal.

Como especificado pelo art. 14 da lei francesa de 1977 (q.v.), é certo que poderá haver outros modos jurídicos de prestação do mesmo serviço como o caso do arquiteto submetido à relação de emprego ou vínculo estatutário, modos que se regem por normas distintas (arquiteto empregado e arquiteto funcionário público regidos, respectivamente, pelo Direito do Trabalho e pelo Direito Administrativo). No caso de obra pública, a prestação de serviço será precedida de licitação e será, ao depois, acompanhada de instrumento de cessão dos direitos autorais de natureza patrimonial (Lei nº 8.666/93). Porém, na perspectiva do arquiteto profissional liberal e trabalhador autônomo1(e também na da sociedade de arquitetos ou arquitetos associados), a prestação de serviço

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é enquadrada juridicamente mediante o aqui revistado negócio (= nec + otium, negação do ócio, ou seja, a contrario sensu, trabalho, ocupação). Como diz Renzo Piano, embora seja uma arte de fronteira, “arquitetura é serviço”.

Vasto e multifário, o objeto da prestação de serviço – que é prestação de obra intelectual (v. art. 2.230 do Código Civil italiano) – precisa ser analisado horizontalmente e verticalmente. No primeiro plano, significa que o arquiteto pode ser contratado para o desenvolvimento de diversas atividades, não se restringindo apenas ao projeto. Daí a ideia de “ato arquitetônico” (cuja abrangência equivale à de ato médico). De fato, não há equiparação possível entre prestação de serviço e projeto: um é gênero e o outro é espécie. A prestação de serviços no âmbito da Arquitetura tem dimensão bem maior que o projeto, apesar da remarcada importância dele na formação do profissional. O arquiteto pode desenvolver fiscalização, assessorias, consultorias, perícias, estudos ou avaliações de impacto, de viabilidade técnica, etc., que não conduzirão necessariamente ao projeto arquitetônico. Tais modalidades de atuação do profissional estão elencadas no art. 2º, caput da lei do CAU.

De outro lado, no aspecto vertical, o projeto arquitetônico envolve diversas fases e o arquiteto pode não ser contratado para todas elas. Sabe-se que o projeto pressupõe estudos preliminares (fase 1) e anteprojeto (fase 2), antes de se chegar ao documento final, projeto básico ou “projeto legal” (fase 3; na França, “dossier de permis”), que é prévio ao início da execução da obra – atividade que exige, por sua vez, igualmente, projeto de outra natureza, agora o projeto executivo. Em cada uma delas deve haver a concordância expressa do proprietário para se passar à outra fase, à fase seguinte. Por isso que o termo do contrato deverá constar, exatamente, qual é a atividade intelectual pretendida do profissional, prevenindo litígios que são muito frequentes (v. jurisprudência).

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Deve-se registar que a existência de um “projeto legal” – também conhecido como “projeto de Prefeitura” – distinto do projeto básico é largamente incompreensível (salvo no nível de anteprojeto, com definição basicamente do partido). Corona & Lemos, em seu Dicionário da Arquitetura Brasileira, reproduzem definição do Instituto de Arquitetos do Brasil, que diz exatamente isto: “Projeto vem a ser o conjunto de plantas, secções e elevações de acordo com as exigências dos poderes públicos e em condições de serem submetidas à aprovação dos mesmos”. Projeto é plano, que é único em cada caso, não devendo se alterar conforme o destinatário. O nível de detalhamento é que poderá sofrer variações.

Nesse sentido, na Espanha, o Código Técnico da Edificação, de 2006, entende que todo projeto de edificação desenrola-se em duas etapas apenas: a fase do projeto básico e a fase do projeto de execução. E afirma: “O projeto básico definirá as características gerais da obra e seus serviços (“prestaciones”), mediante a adoção e justificação das soluções concretas. Seu conteúdo será suficiente para solicitar a licença municipal de obras, as concessões e outras autorizações administrativas, mas será insuficiente para iniciar a construção do edifício” (art. 6º.3/”a”). O projeto de execução desenvolverá o projeto básico, tornando tecnicamente possível o início do processo construtivo. Em outros termos, o projeto básico é que permite a postulação da licença edilícia, não havendo que se falar em dois projetos distintos, “básico” e “legal”, o que, no limite, configuraria ato ilícito (= descompasso entre projeto aprovado e obra executada).

II Notas tipificadoras

O contrato de prestação de serviço (no singular, embora a lei do CAU utilize a expressão por seis vezes no plural) é um contrato civil típico disciplinado pelos arts. 593 a 609 do CC/02. As partes contratantes denominam-se “prestador” e “tomador” e seu objeto, de execução não imediata mas diferida no tempo2, será uma atividade lícita,

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material ou imaterial, do primeiro em relação ao segundo por deter-minado período de tempo. Para não caracterizar contrato de trabalho, o prazo máximo será de quatro anos (cf. art. 5983). Quem diz “atividade” diz sucessão de atos unidirecionados que pratica certo profissional e que, no âmbito do presente texto, será denominado arquiteto (é o prestador); já o tomador do serviço será aqui designado proprietário. Trata-se da antiga “locação de serviços”, tal como o denominava o Código Civil revogado, de 1916, designação considerada hoje atentatória à dignidade humana (aluguel de pessoas?). As definições desse contrato produzidas pela literatura jurídica não ajudam muito a bem compreendê-lo sendo necessário seu isolamento com uma investigação acerca das notas características específicas do ajuste

Aproximando-se bastante do contrato de trabalho, de um lado, e da empreitada, de outro, a prestação de serviço tem perfil singular, tendo por isso havido propostas de eliminação da figura intermédia durante a elaboração do novo Código Civil. Porém entre aqueles três contratos – que, como “denominador comum”, envolvem trabalho, atividade laborativa, material ou intelectual – há diferenças bem marcadas.

O contrato de prestação de serviço em geral – e também a prestação de obra intelectual em particular – não se confunde com o contrato de trabalho por vários motivos. O contrato de trabalho, que gera relação de emprego, apresenta as duas notas típicas da continuidade e da subordinação (ou hierarquia) que não estão presentes no primeiro. O empregador é que define o que fazer e como fazer. Como escreve Bruno Zevi, o cliente proporciona o “conteúdo” que o arquiteto elabora, informa, personaliza Assim, o contrato de prestação de serviço enseja trabalho episódico no tempo (um projeto, um estudo, uma avaliação) e não contínuo e permanente. Ademais, não há qualquer subordinação possível entre o arquiteto, que detém conhecimento téc-

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nico, e o proprietário, um leigo, salvo quanto aos fins a atingir (o que fazer). A independência técnica do prestador, atuando por conta própria, constitui a tônica principal dessa figura contratual do que deriva a definição (a melhor delas) de Orlando Gomes: “contrato mediante o qual uma pessoa se obriga a prestar um serviço a outra, eventual-mente, em troca de determinada remuneração, executando-os com independência técnica e sem subordinação hierárquica”4.

Quanto aos fins a atingir, será o proprietário, dentro da esfera de sua autonomia da vontade e das possibilidades da lei urbanística...

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