Estrito Cumprimento do Dever Legal e Exercício Regular do Direito

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas371-382

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13.1. Estrito cumprimento do dever legal

O ordenamento jurídico, como um todo orgânico e unitário, deve manter harmonia, coesão e equilíbrio em suas normas. Não pode, à evidência, abrigar desconchavos e disparates em seus preceitos, pois geraria incongruência, conflitos, insegurança e, sobretudo, ineficácia e inoperância. O ordenamento jurídico, portanto, deve ser o primeiro e principal guardião no sentido de manter a harmonia e o equilíbrio entre suas disposições legais, para entrosá-las racional e logicamente.

Sob esse ângulo, é insofismável que se o Direito impõe a alguém, mediante preceito de lei, a obrigação e o dever de agir, não pode, por meio de outra norma, puni-lo por fazer exatamente o que lhe era ordenado.

Por via de consequência, quem atua no cumprimento da obrigação ou dever, impostos pela lei, deve ter em seu favor, não obstante cometa um fato típico, uma causa elidente da ilicitude, impeditiva da configuração jurídica do crime.

É o que sucede com a descriminante do estrito cumprimento de dever legal (pflichtgmasse).

O policial que prende o delinquente, em flagrante ou no cumprimento de mandado de prisão, atinge o direito de liberdade alheio, mas não comete o crime previsto no art. 148 do CP porque cumpre dever imposto por lei. Também não existe violação de domicílio criminosa (art. 150, CP) se o policial invade residência alheia para impedir crime que ali está sendo cometido ou se, com obediência das formalidades erigidas na lei, o faz para efetivar prisão judicialmente determinada.

Nenhum crime comete o oficial de justiça que, ao cumprir mandado judicial, despeja inquilino renitente que, inadimplente, não desocupa voluntariamente o imóvel locado.

Não há delito, à luz dos arts. 210 e 212 do CP, na exumação de cadáver procedida pelo médico legista para a elaboração de prova técnica determinada pela Justiça.

Nos países que adotam a pena capital, o carrasco que executa o condenado não perpetra o crime de homicídio. Também o soldado que, em tempo de guerra, elimina o inimigo em campo de batalha não comete delito.

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Atua sob o pálio legal do estrito cumprimento do dever o policial que comete lesões corporais ao atirar contra a perna de criminoso em fuga790, como o fazem, no tocante aos delitos contra a honra, o funcionário público que emite conceito injurioso ou difamatório sobre alguém em apreciação ou informação que presta no cumprimento de dever de ofício791, a testemunha que tece considerações contumeliosas relativas a outrem em resposta a perguntas do magistrado, já que a lei a obriga a declarar a verdade792,

o promotor de justiça que, ao fundamentar pedido de prisão preventiva, explana fatos desabonadores com relação a determinada pessoa793e o magistrado que, ao apreciar questões no cumprimento de dever inerente ao seu ofício jurisdicional, expende considerações moralmente desfavoráveis a terceiro794.

Agem sob a cobertura da excludente em apreço, com a concomitância da legítima defesa (v. n. 11.2), policiais que eliminam criminoso que faz uso de arma de fogo ao receber voz de prisão795.

Ou:

"Inadmissível a condenação de miliciano que se vê obrigado a empregar a força física para reduzir perturbador da ordem pública à passividade e obediência, com intuito de manter a autoridade do Poder Constituído" (JTACrimSP. 38/287).

Deve-se ressaltar, porém, que o dever cumprido que desintegra a antijuridicidade do fato típico não é tão só o resultante de lei, mas aquele que deriva de qualquer norma jurídica (lei, decreto, regulamento etc). Sob esse prisma, é inegável que a descriminante não abrange as obrigações meramente éticas, morais, religiosas ou sociais. Desta sorte, há violação de domicílio (art. 150, CP) se sacerdote força a porta de entrada em casa alheia para ministrar a extrema-unção. Igualmente, ocorre constrangimento ilegal (art. 146, CP) se policial força passageiro de um coletivo a ceder seu lugar a pessoa idosa796 ou se um funcionário de agência bancária constrange alguém, mediante violência, a respeitar a fila formada diante do caixa para o saque de cheques.

De outra parte, adverte Júlio Fabbrini Mirabete, não se admite cumprimento de dever legal nos crimes culposos. A lei não obriga à imprudência, negligência ou imperícia. Entretanto, continua o saudoso penalista, pode-se falar em estado de necessidade na hipótese de motorista de uma ambulância ou de um carro de bombeiros que dirige velozmente e causa lesão a bem jurídico alheio para apagar um incêndio ou conduzir paciente em risco de vida ao hospital797.

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Divergimos do pensamento esposado pelo consagrado autor. Concordamos com os exemplos dados, que projetam para o estado de necessidade a exclusão da ilicitude. Contudo, a negação do estrito cumprimento do dever diante de ações culposas ressente-se da tisna da generalização na sua premissa. Digamos, por exemplo, que policiais integrantes de uma viatura nela desenvolvam excesso de velocidade no encalço a perigosos delinquentes que houvessem acabado de cometer um assalto e que culminem por atropelar - no curso da perseguição - um pedestre. O estado de necessidade, nessa situação, não reúne os pressupostos necessários ao seu descortino jurídico. Mas emerge patente a existência do dever legal justificando o fato de índole culposa.

Exige a lei, para a configuração da excludente, que o sujeito ativo se atenha às condições objetivas a que o dever a cumprir se subordina. A contenção do agente aos limites traçados é indeclinável. Isso porque todo dever, na sua execução, é limitado às medidas da necessidade. Por esse motivo, a norma legal agrega à descriminante o adjetivo estrito cumprimento do dever legal. Vale dizer: não pode o agente ultrapassar as medidas do razoável e do necessário ao cumprimento do dever, sob pena de incorrer em excesso, pelo qual será responsabilizado a título culposo ou doloso conforme seja ou não proposital. Sob essa ótica, é inquestionável que comete crime a autoridade que, após prender o delinquente, vem a espancá-lo. Também perpetra delito o policial que, podendo atirar contra as pernas de criminoso em fuga, prefere abatê-lo com fatal disparo efetuado contra as costas. Nessas hipóteses, desponta clamoroso o excesso no cumprimento do dever e por ele o agente deve ser responsabilizado.

Por derradeiro, é forçoso consignar que a excludente em exame não se confunde com a dirimente da estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico. A primeira exclui a antijuridicidade do fato típico. Na última, a ilicitude subsiste, porque a ordem é ilegal (embora não apresente esta transparência), eximindo o seu executor de culpabilidade (mas possibilitando a punição do mandante). V., a respeito, n. 20.3.

A eximente putativa do dever legal também é possível. O exemplo é de Hungria: a sentinela avançada mata com um tiro de fuzil, supondo tratar-se de um inimigo, o companheiro de armas que, feito prisioneiro, consegue fugir e vem de retorno ao acampamento798.

13.2. Exercício regular do direito

Como enfatizado no tópico anterior, não é concebível que o Direito confira guarida a preceitos contraditórios, antagônicos e conflitantes.

Nessa conjuntura, seria incurial que, mediante um de seus preceitos, a lei conferisse a alguém determinado direito e, por meio de outra norma, o punisse por exercitá-lo, tomando com uma das mãos o que a outra concedera.

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Se o Direito, em qualquer dos seus ramos, anota Basileu Garcia, aprova a prática de determinado ato, é claro que a legislação penal não poderia contrariar a norma permissiva e considerar punível o acontecimento799.

Direito e crime, pondera Magalhães Noronha, são antíteses: onde há delito não há o direito, onde existe direito não é possível crime800.

Dessa forma, quem atua no exercício regular de um direito age sob o manto protetivo da excludente de ilicitude em tela, ainda que típico o fato perpetrado.

Por tal razão, não há delito de maus tratos (art. 136, CP) no castigo paterno moderado, pois realizado com fulcro no jus corrigendi. Igualmente, se o pai castiga o filho menor, traquinas e peralta, colocando-o sentado numa cadeira e confinado no quarto, ou se, visando repreendê-lo por uma travessura qualquer, lhe dá uma palmada ou um beliscão, sobejam também sem configuração antijurídica o cárcere privado (art. 148, CP) e a contravenção das vias de fato (art. 21, LCP).

Age no exercício regular de um direito, outrossim, restando por esse motivo afastada a ilicitude de fato típico subsumível na figura do cárcere privado (art. 148, CP), o comandante de navio cargueiro que, embasado na faculdade que lhe confere o art. 10, n. III, da Lei n. 9.537/1997, mantém detido em um compartimento, para assegurar a ordem e a segurança da embarcação, passageiro clandestino que surpreendeu no interior do navio801.

Sob outra vertente, sendo concedida por cânone constitucional aos acusados de crime a plenitude da defesa, crível é que, com respaldo no nemo tenetur se detegere decorrente, não cometem delitos os réus que perpetram, em sua defesa, com reflexos unicamente processuais, seja o comportamento omissivo ou comissivo, fatos típicos. Assim, inexiste o crime de falsa identidade (art. 307, CP) ou falsidade ideológica (art. 299, CP) na conduta daquele que, com falácia, se declara menor inimputável ou fornece nome falso por ocasião da lavratura do auto de prisão em flagrante. Igualmente, não há denunciação caluniosa (art. 339, CP) se o réu, ao apontar alguém como autor da infração que cometeu, sabendo-o inocente, não teve a intenção de dar margem à instauração de investigação policial ou a outro processo contra ele, desejando somente livrar-se da ação penal. Nesses casos, não obstante o cometimento de fatos típicos, encontravam-se seus autores no exercício regular de um direito, id est, o de defesa processual802.

Não ocorre crime contra a honra, com lastro na excludente analisada, na atitude do...

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