A estrada dos tijolos amarelos: erflexões acerca do centralismo burocrático no judiciário trabalhista brasileiro

AutorPaulo Henrique Tavares da Silva
CargoDoutor e mestre em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela UFPB
Páginas118-134

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1. Introdução

O objetivo central do presente trabalho é evidenciar o caráter contraditório das mudanças gerenciais promovidas no âmbito do judiciário, com rebatimentos específicos na Justiça do Trabalho, a partir do novo cenário criado pela Emenda Constitucional n. 45, génese das distorções hoje encontradas no comportamento da primeira instância. Com efeito, a partir da criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), foram introduzidas várias mudanças no perfil do judiciário, inspiradas no neocorporativismo, cujo objetivo declarado seria à promoção de uma transformação radical no funcionamento desse poder, a partir da introdução de conceitos e técnicas típicos da iniciativa privada no seio da administração pública.

Justamente a partir dessa proposta tida como inovadora reside o caráter contraditório que ora enfrentamos, haja vista que a efetivação de concepções típicas da iniciativa privada no âmbito da administração pública, especialmente no seio do judiciário, sempre enfrentará o problema decorrente do caráter burocrático ínsito naquela estrutura e historicamente consolidado. Paradoxalmente, percebe-se que a introdução dessas noções, embora inspiradas numa conformação tida por modernizante da estrutura judiciária, ao invés de promover uma otimização, vem causando um estranhamento entre as instâncias, causado pelo manifesto esvaziamento de poderes e importância da magistratura de base diante do papel exercido pelas cortes superiores.

Mas já a essa altura, caberia ao leitor indagar a origem do título deste ensaio. Trata-se de uma homenagem ao romance infantil O Mágico de Oz, de Lyman Frank Baum, publicado em 1901, cuja versão para o cinema mais festejada, estrelada por Judy Garland, está prestes a completar setenta e cinco anos. Não se trata, porém, de algo simplesmente apartado do espírito deste trabalho científico. Pelo contrário!

As múltiplas transformações da modernidade acarretam para aquele ofertar explicações um desafio adicional, representado duplamente não apenas pelo enfrentamento da forma das mudanças, como igualmente do conteúdo ideológico nelas escondido. Uma boa análise crítica deve manter sempre essa sintonia, ainda mais quando palmilhamos o território do jurídico e seu relacionamento com a realidade concreta dos fatos sociais. Portanto, a escolha daquela obra infantil como fio condutor não deve ser tida por inconsequente, haja vista portar aquela narrativa elementos capazes de emprestar essa harmonização com a tese que estamos aqui a desenvolver e, se tal tarefa puder ser cumprida através da aparente simplicidade de uma história para crianças, tanto melhor, pois ameniza da crueza da vida real.

Para os que não se recordam, ou não tiveram a oportunidade de ler um clássico da literatura estadunidense, trata o livro de Baum da pequena Dorothy, menina órfã que morava com seus tios numa miserável fazenda no interior do Kansas quando, tragada por um ciclone, foi parar num mundo distante e sur-real, a Terra de Oz, poderoso e recluso mágico, residente na Cidade das Esmeraldas. Buscando retornar para o convívio da sua família, a protagonista encontra a companhia de três personagens marcantes, um leão, um lenhador de lata e um espantalho. Juntos enfrentam inúmeros perigos nessa fantástica jornada e chegam mesmo a manter um encontro pessoal com o Mágico. O título do presente artigo é uma alusão ao caminho que Dorothy tem de percorrer para chegar a Cidade das Esmeraldas, estrada que tinha tijolos dourados (quem sabe não eram de ouro?).

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Visando discutir o modelo burocrático que se implantou no Judiciário brasileiro, cuja natureza desde já enunciamos (burocrático e não gerencial, que nada tem de inovador ou revolucionário), iremos percorrer nossa breve estrada, na companhia da menina, seus três amigos e do Mágico de Oz. A exposição está assim dividida em quatro partes, dedicando-se a primeira parte ao desenho teórico que se deu à Reforma do Judiciário, a partir do projeto maior de reforma do Estado brasileiro, de nítida inspiração neocorporativista. Em seguida, submeteremos o modelo gerencial implantado à crítica histórica e às confrontações inerentes ao que se passou com a administração privada no curso do final do século XX. A terceira parte do ensaio dedica-se ao comportamento da primeira instância frente ao modelo de centralismo burocrático vigente. Enfim, reservamos a conclusão para discutir como fugir do mundo de Oz, naquela realidade paralela em que imergiu o judiciário.

2. Colocando os óculos verdes

Vamos começar nossa jornada fazendo uma pequena incursão nos fundamentos da denominada Reforma do Judiciário, comparando seu suporte teórico com aquilo hoje vivenciado no funcionamento deste poder. Sem dúvida se trata de uma grandiosa (e engenhosa) construção doutrinária, responsável pelo redesenho do perfil dos aparelhos estatais brasileiros, a partir do final da década de 1990. Antes de nela adentrarmos, uma cautela se faz necessária, pois, a chegada de Dorothy e seus amigos a Cidade das Esmeraldas é marcada por momento inusitado: todos são obrigados a pôr óculos verdes, sob pena de ficarem cegos com o brilho e esplendor que ali irão encontrar. As pessoas dali usavam tal artefato dia e noite, atados por chave, somente possuindo o Guarda dos Portões poder para retirá-los. Pois bem, independentemente da cor que se queira atribuir, parece que muitos, quando se fala em Reforma do Judiciário, estão utilizando óculos semelhantes.

Todo o planejamento estratégico da reforma do Estado promovida a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso encontra-se minuciosamente descrito no documento denominado Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), de 19951. Nele há o reconhecimento da insuficiência estatal em assumir as crescentes expectativas geradas pelo modelo do bem-estar social, apontando como características da crise vivenciada no final do século XX a crescente perda de crédito por parte do Estado e pela poupança pública que se torna negativa; o esgotamento da estratégia estatizante de intervenção direta no domínio económico e, por fim, da necessidade de superar a forma de administrar2. No tocante à reforma da administração pública, introduz o PDRA o conceito de administração gerencial.

A administração gerencial representaria a superação da administração burocrática, modelo este típico da sociedade liberal, nascido na segunda metade do século XIX, como forma de combater a corrupção e o nepotismo da forma mais antiga de administração pública, a forma patrimonialista (esta típica das monarquias absolutistas, onde a respublica se imiscuía com a resprincipis). Segundo afirmava aquele documento, o modelo burocrático encarnava como virtude a efetividade no controle dos abusos e, como pontos negativos, "a ineficiência, a au-torreferência, a incapacidade de voltar-se para o serviço aos cidadãos vistos como clientes", pois o Estado se limitava a "manter a ordem e administrar a justiça, a garantir os contratos e a propriedade"3

Em resposta à expansão das funções do Estado e ao desenvolvimento causado pela globalização económica mundial, a administração gerencial surge a partir da segunda metade do século XX, adotando como fundamentos os

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valores da eficiência e qualidade na prestação dos serviços públicos e pelo desenvolvimento de uma cultura gerencial nas organizações. No entanto, já se advertia que o novo modelo não representava a derrogação das concepções burocráticas anteriores, pelo contrário, pois,

[...] a administração pública gerencial está apoiada na anterior, da qual conserva, embora flexibilizando, alguns dos seus princípios fundamentais, como a admissão segundo rígidos critérios de mérito, a existência de um sistema estruturado e universal de remuneração, as carreiras, a avaliação constante de desempenho, o treinamento sistemático. A diferença fundamental está na forma de controle, que deixa de basear-se nos processos para concentrar-se nos resultados, e não na rigorosa profissionalização da administração pública, que continua um princípio fundamental.4 (sublinhado nosso).

A estratégia dessa nova modalidade gerencial, em síntese, fulcra-se em: definição precisa dos objetivos que o administrador público deverá atingir em sua unidade; garantia da autonomia do administrador na gestão dos recursos humanos, materiais e financeiros que lhe forem colocados à disposição para que possa atingir os objetivos; controle ou cobrança a posteriori dos resultados, bem como na descentralização e redução dos níveis hierárquicos no plano da estrutura organizacional. Tudo como forma de tornar a administração pública permeável à maior participação dos agentes privados (ou organizações da sociedade civil), além de deslocar o foco dos procedimentos para os resultados.

Queremos aqui enfatizar que, mesmo ali, nos fundamentos da reforma do Estado brasileiro, não se negava a descentralização e a confiança como fundamentos do novo modelo que se buscava implementar, haja vista que nele a criatividade passa a ser valorizada, algo sufocado pelo paradigma burocrático a ser superado. Vejamos:

O paradigma gerencial contemporâneo, fundamentado nos princípios da confiança e da descentralização da decisão, exige formas flexíveis de gestão, horizontalização de estruturas, descentralização de funções, incentivos à criatividade. Contrapõe-se à ideologia do formalismo e do rigor técnico da burocracia tradicional. A avaliação sistemática, à recompensa pelo desempenho, e à capacitação permanente, que já eram características da boa administração burocrática, acrescentam-se os princípios da orientação para o cidadão-cliente, do controle por resultados, e da competição administrada5 (sublinhado nosso).

O Poder Judiciário, como elemento integrante do núcleo essencial do Estado, não poderia se...

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