Estetica Sociologica do Direito.

AutorFischer-Lescano, Andreas

Estetica Sociologica do Direito

Criacao e aplicacao do direito produzem textos com recurso a textos. Portanto, nao e nada surpreendente que a ciencia juridica seja tambem concebida principalmente como ciencia linguistica do texto (Textwissenschaft). Direito, segundo a teoria do direito convencional como "teoria do conhecimento juridico", (1) seria acoplado a canais de comunicacao visuais e auditivos, observaria visualmente seu ambiente, no melhor dos casos com ajuda do ouvido. (2) Nesse sentido, como Niklas Luhmann indicou ha bastante tempo, e um erro de compreensao fundamental considerar que a reproducao de conhecimento existente com inovacao seja vinculada a "transposicao (auditiva ou visual) de quantidades de texto". (3) Conhecimento nao e nem texto, nem imagem, tampouco barulho ou fumaca. Nao e concreto, mas sim uma acao por vir expressa na comunicacao. Conhecimento e uma "expectativa estilizada como experiencia cognitiva". (4) O "conhecimento juridico" nao e, portanto, muito do que ele parece ser: nao e objetivo, nem tampouco um discurso intersubjetivo sobre o conhecimento da realidade dada. Conhecimento juridico sob as condicoes sociais da incerteza e muito mais volatil, fragmentado, policontextural--resultado de assincronismos e inacessibilidades entre comunicacao e consciencia, entre consciencia e inconsciencia, "entre cerebro e mundo exterior, que apenas toma forma pelo cerebro". (5)

Nao se pode estudar o conhecimento juridico a partir de uma metaregra de legitimacao homogenea do conhecimento, (6) ao contrario, deve-se acima de tudo proceder a partir da teoria da diferenca. O conhecimento do direito surge apenas na diferenca entre direito e nao-direito. Por isso, uma teoria do conhecimento juridico assume seu ponto de partida analitico em cada diferenca epistemologica fundamental e nao na diferenca entre racionalidade juridica racional e mundo exterior arracional. (7) Na perspectiva da teoria da diferenca, a questao central e saber se a racionalidade juridica assume o nao-juridico adequadamente como refrencia, ou, em outras palavras, se o direito desenvolve uma imagem suficientemente complexa dessa relacao na diferenciacao entre direito e nao-direito. A demanda aqui colocada consiste em desenvolver uma sensibilidade tambem para tais fenomenos, os quais nao sao expressao apenas de forcas racionais, mas tambem arracionais. Tem por objetivo a construcao de um conhecimento estetico do direito, (8) que nao utiliza suas terminologias e sistematizacoes dogmaticas de forma autossuficiente e isolada de seus contextos sociais em esferas de abstracao juridica cada vez mais altas, mas sim que se relaciona de forma responsiva com as forcas sociais e humanas. Direito somente e direito na diferenca em relacao ao seu ambiente nao-juridico, no qual se desenvolvem forcas arracionais e racionais igualmente. Apenas por meio da autorreflexao do direito sobre essa diferenca entre direito e nao direito--e esta e a tese que gostaria de desenvolver a seguir--e possivel que surja um direito que "sabe sobre si mesmo". (9)

Para isso, requer-se uma "modestia sobre o que nao se conhece", que acabe com as auto-incenacoes dos "conhecedores do direito verdadeiro". (10) A autonomia do direito nao e garantida por meio da acumulacao de conhecimento dos especialistas, mas sim apenas quando o direito da sociedade mundial contrapoe-se as tendencias de mercantilizacao, estatizacao, militarizacao e cientificizacao da forma juridica com um "proprio juridico"; (11) quando conserva a ideia de emancipacao humana e social e, em uniao com as forcas da sociedade civil, atua para sua efetividade. (12)

Pre-requisito para isso e que a racionalidade juridica se confronte com seus outros; que ela enfrente as alturas e abismos da existencia humana e social e, assim, recuse a tentacao de "reduzir o problema que aqui se abre a distincao entre racional e irracional". (13) A racionalizacao do direito nao consiste em relocalizar a "irracionalidade em instancia primitiva do direito" por meio de um sistema juridico puramente racional. (14) Ao contrario, a racionalidade juridica, como o sistema de comunicacao socialmente diferenciado da economia, da politica e da arte--, e (tambem) uma forma organizada da arracionalidade. (15) No direito, Forcas racionais e arracionais--e tambem sua parte negativa anti-racional/irracional--atuam conjuntamente. A criacao de um tabu sobre a forma nao racional impede que se forme uma imagem completa. Para tanto, e necessaria a reflexao acerca dos momentos da comunicacao social que sao racionais e arracionais, semanticos e de forca e, de sentido e sensibilidade: (16) o conhecimento juridico e conhecimento do direito, bem como de suas dimensoes, consequencias e condicionalidades racionais e arracionais--tambem sobre a falta de sabor, de sensibilidade e de tato frente as questoes da emancipacao social e humana.

O objetivo de tal teoria do conhecimento juridico e um direito que conhece os riscos da ocupacao estrangeira e assim reflete tanto sobre a diferenca entre direito e nao-direito, quanto sobre o entrelacamento entre racionalidade e arracionalidade. O meio dessa teoria do direito e a estetica. (17) E ela que tematiza as "conexoes e contrastes, harmonias e correspondencias, oposicoes e analogias" (18) de uma forma que nao separa o racional do irracional artificialmente. Uma abordagem desse tipo parece ser ser especialmente fertil para o desenvolvimento de uma teoria do conhecimento juridico. Em seguida, eu gostaria, na primeira parte, de esbocar algumas das principais linhas do campo "direito e estetica" (I). Em um segundo passo, irei associar essas linhas da teoria estetica do direito com discussoes sociologicas e filosoficas sobre estetica (II), para, ao final, em um terceiro passo, indicar em que poderia consistir a mais-valia de uma tal associacao para a ciencia e praxis do direito (III).

  1. Abordagens de uma estetica do direito

    A ideia de refletir esteticamente sobre o direito ja nao e ha muito tempo nenhum "teste de coragem" academico. (19) Para uma historia das ideias da estetica do direito e suficiente retornar ate Platao. Na Politeia, Platao conecta teoria do Estado a musica em reflexoes sobre organizacao da harmonia. (20) Tanto o Estado quanto a musica deveriam proceder estetico harmoniosamente. Tambem em Friedrich Schiller, encontra-se uma combinacao de estetica e teoria do Estado, que assume como ponto de partida a ideia grega de Paideia (21) e enfatiza sua dimensao estetica em relacao a essencia do Estado. (22) Gustav Radbruch, ja nos anos 1920, exigia que ciencia do direito (Jurisprudenz) nao se deixasse impedir de refeletir sobre a conexao entre direito e arte presente nesses trabalhos precedentes apesar da "especificidade dos campos da cultura" formados desde aquela epoca. Radbruch pleiteava por uma "estetica do direito" que refletisse neste "cada mistura peculiar de frieza e incandescencia", cada presenca simultanea da "pobreza de um estilo lapidar" e do "sentimento combativo do direito". (23) O autor assume, nesse caso, uma perspectiva dupla, que vira tambem a ser caracteristica de trabalhos posteriores no campo da estetica juridica, (24) como, por exemplo, o tratado de Heinrich Triepels, "Do Estilo do Direito", (25) no qual, por um lado, sao analisadas as formas de expressao artistica do direito e, por outro, este e tratado como materia da arte. (26)

    Nessa tradicao, a estetica do direito e concebida em primeira linha como estetica literaria do direito. (27) Jakob Grimm ja indicava em seu texto, "Da Poesia no Direito", que "direito e poesia levantavam juntos da mesma cama". (28) Da mesma forma que a literatura, o direito queria, como descreve Hans Fehr em sua trilogia dos anos 1930, "Arte e Direito", (29) tocar os destinatarios do direito nao apenas racional mas tambem emocionalmente, "alcanca-los em sua mais profunda alma". (30) Estudos sobre direito e poesia que transcendem uma poetica mitica do direito (31) tem seu inicio nesse periodo. (32)

    Os autores classicos da estetica do direito (33)--como o movimento direito e literatura (34)--criticam o direito em termos esteticos. (35) O direito, a metodologia juridica e as praticas de decisao juridicas utilizam as formas da retorica, da arte, da arquitetura, do teatro. (36) Uma estetica do direito, como aqui colocada, busca um direito que utiliza a estetica como metafora central principalmente para a metodologia e teoria da decisao. (37) Essas abordagens recusam acima de tudo as imputacoes de racionalidade das atuais teorias da decisao:38 decisoes normativas sao legi artis justificadas racionalmente com referencia a norma juridica. Isso nao significa, no entanto, que a decisao normativa tenha sido tomada racionalmente de fato. (39) Pelo contrario: a formacao, a justificacao e tambem as consequencias das decisoes juridicas possuem nao apenas dimensoes racionais como tambem arracionais. (40) A compreensao tradicional do direito, frequentemente criticada em trabalhos de estetica juridica, resume o processo juridico ao seu momento objetivante e racional e dedica-se, assim, apenas a um aspecto do direito. (41)

    Essas perspectivas assumem reflexoes da teoria da linguagem do direito. (42) Elas indicam as dificuldades da vinculacao do direito por meio da linguagem e examinam as diferentes tipos de narrativas do direito. (43) Isso afeta, por um lado, a operatividade interna do direito, por outro, da mesma forma, a limitacao da propria linguagem. A traducao de conflitos sociais em linguagem juridica, ou a constatacao dessa tradicao de pensamento da estetica juridica, aliena exatamente esses conflitos. (44)

    Dentre os textos do campo do "direito e literatura" ha muitas outras correntes que tratam de aspectos estetico-juridicos--acima de tudo como critica as encenacoes do direito e ao ocultamento das tecnicas de poder e dominacao a ele vinculadas. Assim, trabalhos do campo "musica e direito" retomam nao apenas a teoria da harmonia de Platao, (45) como comparam...

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