Estelionato e Outras Fraudes

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas619-679

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19.1. Estelionato arquétipo e fraudes afins

Muitas vezes, observa-se que certas condutas, permeadas do enleio, da trapaça ou da malícia, substituem a clandestinidade ou a violência de outros crimes patrimoniais pela astúcia e engenhosidade do agente. O estelionato, previsto no art. 171, caput, do CP, representa figura exemplar dessa ocorrência. Não é, porém, a única. No seu formato padrão, o estelionato serve de paradigma e protótipo para outras figuras criminosas afins, estas contidas no § 2º do mesmo dispositivo e nos preceitos albergados nos arts. 172 usque 179 do diploma penal. Tais entidades delituosas constituem o objeto de estudo do presente capítulo.

O estelionato retrata a fórmula genérica, aquela diretriz fundamental, básica e reitora que vale de substrato aos modelos típicos que dele derivam e com os quais ele se estreita, coordena e interage por meio dos princípios da especialidade e subsidiariedade. Nesse quadrante, o estelionato somente adquire autonomia típica por exclusão, ou seja, quando ausentes os elementos especializantes que, descrevendo graus e fases diferentes na violação do mesmo bem jurídico, conferem contornos criminosos às outras fraudes inscritas pela lei penal no mesmo capítulo incriminador. O dispositivo do art. 171, caput, do CP, destarte, estampa a moldura ampla e unitária dos crimes desta seção da lei, pois o preceito legal que o define compreende e resume os demais tipos referentes aos outros crimes que lhe são assemelhados. Daí a natureza supletiva, acessória e subsidiária de que o estelionato se reveste em relação às outras imagens típicas que lhe têm parecença, eis que somente configurável quando a conduta não se enquadrar em outra figura típica análoga, em situação bastante semelhante aos crimes de perigo, conforme exposto no n. 10.2, para onde remetemos o leitor.

19.2. Estelionato: noções prévias, conduta incriminada, meios executivos e objeto material

O estelionato (art. 171, caput, CP), como os crimes de furto, roubo e apropriação indébita, toma conformação típica pelo assenhoreamento ilícito de coisa alheia

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efetivado pelo sujeito ativo. Difere substancialmente daqueles crimes, entretanto, pela forma como o valor alheio chega às mãos do agente (v. n. 18.1), ou seja, por meio da consciente entrega do bem efetivada pela vítima, embora iludida e ludibriada pela urdidura engendrada pelo sujeito ativo e que vicia a sua vontade. Dotada de maior intimidade é a aproximação típica existente entre o estelionato, a extorsão e o furto qualificado pelo emprego de fraude. Tanto no estelionato como na extorsão (esta quando exaurida) a vítima entrega valores ao agente, mas coagida na última situação e de espontânea vontade na primeira. No que atine ao diferencial entre estelionato e furto qualificado pelo emprego de fraude, que têm como característica comum a utilização de artimanhas, enliços, embustes e engodos pelo sujeito ativo para enganar, engabelar ou iludir a vítima para o aproveitamento patrimonial desejado, verifica-se, como destacamos no n. 13.13, com exemplos a respeito destas duas figuras típicas, que a distinção de fundo entre elas reside na unilateralidade do furto majorado pela fraude, pela dissensão da vítima no apoderamento do bem, e na bilateralidade do estelionato, pela aquiescência do lesado (embora viciada e tisnada) na entrega do valor (v. n. 13.13).

A ação incriminada, de natureza composta, consiste em obter vantagem ilícita em prejuízo alheio, ou seja, conseguir o agente sucesso nesta empreitada ao induzir ou manter a vítima em erro. Erro é a falsa impressão ou a visão distorcida da realidade. Induzir pressupõe atividade do sujeito ativo antecedente ao erro e traduz iniciativa, pois é ele quem faz germinar e brotar a situação de engano e ludíbrio na qual a vítima incorre. Manter subentende atividade contemporânea com o erro por meio da qual o agente se prevalece de precedente e espontâneo equívoco da vítima e não o desfaz, permitindo que o erro persista para locupletar-se. Na primeira situação, leciona Guilherme de Souza Nucci, o autor do estelionato provoca a situação de engano e, na segunda, apenas dela se aproveita2020.

De outro turno, a conduta típica está subordinada a peculiar maneira de execução (crime de forma vinculada) e se opera mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento (v. n. 13.13), formas de induzimento ou mantença da vítima em erro.

Artifício, com propriedade assevera Mirabete, existe quando o agente utiliza um aparato que modifica, ao menos aparentemente, o aspecto material da coisa: o documento falso ou outra falsificação qualquer, o disfarce, filmes, efeitos de luz2021, o bilhete premiado etc. Não há, entretanto, sob este prisma, o denominado estelionato processual. Certo indivíduo, para exemplificar, dizendo-se em situação aflitiva e desesperadora, obtém de um conhecido, para quem nunca trabalhou, carta de referência para a obtenção de emprego e para quem solicitou declaração mendaz de vínculo empregatício anterior com o declarante e referências elogiosas a seu respeito. É atendido, de boa-fé, pelo solicitado. Logo depois, de posse da declaração, o solicitante ajuíza reclamatória trabalhista em desfavor do declarante, na qual reclama pagamento e indenização de verbas trabalhistas. Não ocorre o estelionato (ou sua tentativa) porque o reclamado tem oportunidade para contrariar processualmente a pretensão do postulante de má-fé e porque a conduta tem guarida típica específica no crime de fraude processual (art. 347, CP) ou uso de documento falso (art. 304, CP).

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Ardil é a conversa enganosa, ladina, marota, produto da patifaria do malandro, na qual se encarta a própria mentira2022. Comete o crime, para ilustrar, quem mente para a vítima, propondo-lhe realizar determinado serviço, mediante pagamento antecipado, sabendo de antemão que não irá realizá-lo2023. Ainda: agente que, ao saber que o proprietário de determinado objeto o deixou em poder de pessoa de sua confiança, apresenta-se a esta e mente, dizendo que foi enviado pelo dono, e assim recebe o referido objeto, de que se apodera2024.

A lei refere-se também a qualquer outro meio fraudulento, de modo a utilizar expressão genérica e elástica da qual artifício e ardil representam formas exemplificativas precedentes, deixando o dispositivo em aberto, no campo da previsão legal, a possibilidade da inclusão, por equiparação (exegese extensiva), de outras hipóteses não expressamente declinadas, mas restritas sempre à semelhança com a fórmula, de sorte que qualquer diferença entre artifício e ardil resta desprovida de importância jurídica.

No tocante ao apoderamento de energia elétrica, gás ou água por meio dos relógios medidores do consumo, a conduta pode configurar furto ou estelionato, dependendo do ponto em que este apossamento ocorrer no aparelho (v. n. 13.7).

O elemento nuclear típico é essencialmente comissivo, pois pressupõe desprendimento de energia de parte do agente no sentido de embair e engabelar a vítima para a captação de sua boa-fé, condição indeclinável para privá-la de seus valores. Nada impede, porém, estelionato por omissão2025. Assim: "havendo, para o agente, um dever jurídico de falar, seu malicioso silêncio quanto à verdade pode caracterizar fraude integradora de estelionato" (JTACrimSP. 91/412). Ilustra Hungria: caso da reticência do colecionador que adquire de pessoa inexperiente, por preço irrisório, um objeto precioso pela sua raridade ou antiguidade2026.

Objeto material do crime, segundo ressai da dicção típica do dispositivo incriminador, é uma vantagem ilícita, sem exclusão sequer dos direitos imobiliários. Deve ser vantagem indevida. Se a vantagem almejada é devida ou se assim a supõe o agente, poderá configurar-se o crime de exercício arbitrário das próprias razões (art. 345, CP). Outrossim, a vantagem colimada, necessariamente, deve ser econômica, pois o delito se enquadra nos crimes contra o patrimônio2027. Se a vantagem obtida é irrisória, ocorre crime de bagatela, corolário do princípio da insignificância (v. n. 1.9).

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Exatamente porque a vantagem perseguida deve ser econômica, precedida do ludíbrio da vítima e seguida da produção de prejuízo patrimonial, o estelionato não ocorre na fraude em exames vestibulares ou concursos públicos em que alguém, de fora, mesmo mediante contraprestação ajustada em dinheiro, passa para um candidato, operando comunicação por meios eletrônicos sub-reptícios, informações sobre as questões da prova, uma vez que não há aproveitamento patrimonial indevido em desfavor do candidato e inexiste pessoa pagante incauta enredada pela burla. A simples imoralidade da vantagem, perlustra Cezar Roberto Bitencourt, é insuficiente para caracterizar o estelionato2028.

19.3. Estelionato: sujeitos do delito

Sujeito ativo ou agente, em face da...

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