União Estável Sob os Ângulos da Informalidade e da Prova

AutorDelmiro Porto
CargoEspecialista em Direito Civil e Processual Civil. Mestrando em Desenvolvimento Local. Professor da Universidade Católica Dom Bosco (Campo Grande-MS)
Páginas21-30

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1. Ideias iniciais

Em que pese ser a união estável um instituto recém-nascido, percebe-se que não tem havido maiores dificuldades em operá-lo, seja no enquadramento de seus pressupostos, seja na identificação de seus múltiplos e ricos efeitos. Isso não significa, porém, que tenha recebido o tratamento que a ordem jurídica reclama.

O próprio legislador procurou ser didático, declinando, de forma categórica, seus pressupostos de existência, como se vê no art. 1.723 do Código Civil: "É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família." Ou seja: diferença de sexo, estabilidade, publicidade e intuitu familiae. Sobre a heterossexualidade, ainda exigida à luz da lei, será comentado, ao final, o novo posicionamento ju-risprudencial, a partir do Supremo Tribunal Federal.

Diferença de sexo e intuitu familiae pressupõem naturalmente a afetividade, o que diferencia a união estável de outros relacionamentos que não têm no amor o valor fundante, mas noutros sentimentos: amizade ou simples conveniência (por exemplo: república de estudantes), religião (por exemplo: missão), mútua cooperação (por exemplo: idosos que se amparam), conveniência e parentesco (por exemplo: idosos que se amparam, viúvas).

Esses requisitos serão trabalhados pontualmente, com foco na questão da prova da união estável em face de sua informalidade. Far-se-á um confronto entre a norma e a prática cotidiana sobre a qual se tem feito incidir essa norma, ainda que essa incidência pareça, salvo melhor juízo, ter ocorrido ao arrepio

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do próprio direito, como uma roupa que não serve mas se veste assim mesmo.

A liberdade que o aspecto informal do instituto confere acaba por gerar situações que escapam à teleologia da norma, com flagrante prejuízo à segurança jurídica, considerando, mormente, que o instituto é importante fonte de família.

2. Origem e formação da união estável

A união informal é tão antiga quanto a humanidade e o amor. Vale dizer, sempre foi possível, em todos os tempos e em todos os lugares, encontrar homem e mulher convivendo afetivamente, sem qualquer formalidade e com o sentimento de família.

Portanto, certo que novo é somente o aspecto jurídico desse mesmo fenômeno. No mundo fenomênico fático, é antigo, mas juridicamente, ou seja, o fenômeno fático valorado e normatizado (Reale, 2002), isto, sim, é uma novidade no direito civil brasileiro. É desse aspecto fenomenal que se cuida neste estudo.

O Estado brasileiro, seguindo o exemplo dos demais, especialmente França, Portugal, Alemanha e Espanha, recepcionistas do direito romano (Venosa, 2005), privilegiou o casamento em detrimento das demais relações, não sem razão, como se perceberá neste trabalho.

Assim, o Estado oficializou uma família matrimonializada, e mais, patriarcalista, que é o núcleo familiar inteiramente organizado com base na figura paterna ou marital. É o ideal de família estabelecido, por exemplo, no Estado romano, ideal que chegou aos dias presentes, na maioria dos povos; no caso do Brasil, uma herança da colonização portuguesa (Venosa, 2009).

Fora do casamento, as demais relações conjugais podiam ser classificadas em concubinatos puros e impuros (Lisboa, 2009), ambos repudiados pela moral e pela religião, tanto quanto pelo direito, mas repugnância maior causavam os impuros, que eram aquelas uniões livres, assim estabelecidas não por uma conveniência pessoal, um modo próprio de ver a vida, mas por estarem impedidos de se enlaçar em núpcias: ao menos um já era casado, ou havia uma relação parental impeditiva ou, ainda, um deles havia cometido homicídio para se estabelecer com a viúva ou viúvo.

Esses concubi-nos todos, mas em maior grau os impuros, eram um nojo para o Estado, que, embora leigo desde a Constituição Federal de 1891, tinha em sua sociedade uma cultura que se costuma chamar de conservadora. Esses conviventes, ao precisarem da jurisdição, não eram admitidos como entidades familiares, mas suas sociedades, meramente de fato, eram tratadas como matéria cível comum. Ao partilhar patrimônio, por exemplo, com a extinção dessas sociedades, o juízo tinha por regra o esforço comum (Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal), em atenção ao princípio da vedação do enriquecimento sem causa.

A natural transformação da sociedade mostra, em especial após a segunda guerra mundial, uma nova leitura do núcleo familiar (Gonçalves, 2005). Ponto crucial dessa mudança está, certamente, na emancipação da mulher (Venosa, 2009), que passa pela conquista de espaço no mercado de trabalho, domínio sobre seu corpo (com a descoberta da pílula anticoncepcional), para chegar à emancipação jurídica.

Em suma, conquista o econômico e, por consequência, ganha voz e vez. Com isso, a família teve sua estrutura patriarcal visivelmente abalada, pois o poder centralizado na figura do pai de família (pater familias) passa a se abrir. Era um prenúncio da igualdade jurídica dentro da família nuclear, igualdade que seria a arma letal na demolição sócio-político-cultural da estrutura patriarcalista.

Em atenção a isso o legislador constituinte de 1988 anuncia uma nova família, estruturada na igualdade (Gonçalves, 2005), em oposição à família-patriarca, marcada-mente desigual. O novo modelo anunciado propôs uma família de trajes novos, da cabeça aos pés. Isso re-paginou a escola doutrinária que ainda não acompanhava esse afã da sociedade, influenciou decisões judiciais, mas foi o Código Civil, de 2002, que efetivou essa família de roupas novas: além da igualdade entre cônjuges, entre companheiros e entre filhos, a liberação sexual, a juridicização do afeto, a pluralidade da entidade familiar e a função social da família. A essas alturas nada mais restava insepulto do fantasma patriarcal.

Nessa promoção do equilíbrio jurídico, uma das novidades é que a união estável passa à condição de entidade familiar (art. 226, § 3o, Constituição Federal). Nesse aspecto a roupa nova já aparece antes do noviço Código (art. 1.723 a 1.726, além de dispositivos pul-

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verizados no código), com as Leis 8.971, de 29 de dezembro de 1994, e 9.278, de 10 de maio de 1996, que atenderam, inicialmente (hoje revogadas na matéria de família), à regulamentação do texto constitucional.

Desde então, seja casamento, seja união estável, ambos são fonte de família, ambos são suficientemente nobres para que se abriguem sob as asas da proteção estatal. Entretanto, não foram todas as uniões extramatrimoniais que encontraram essa guarida. Quando o legislador constituinte perguntou que uniões informais havia à margem do direito de família, foi avisado de que havia concubinatos puros e impuros. O § 3o do art. 226 foi a porta que esse legislador abriu para receber todas aquelas sociedades que vivessem em concubinato puro, ou seja, viviam informalmente por conveniência, por opção, pois não estavam impedidas para o casamento.

Numa metáfora, imaginam-se esses concubinos saltando em festa para o espaço do direito fami-liarista, estourando champanhe e brindando à juridicização de suas uniões, quando foram alertados de que não mais se chamariam concubinos, mas companheiros, e que, portanto, não estavam mais em concubinato, mas em união estável.

Quanto àquelas uniões que não foram convidadas para essa festa da emancipação jurídica, continuam por lá (art. 1.727 do Código Civil), à margem do direito de família, hoje chamadas apenas de concubinato, sem o adjetivo impuro, pois não há outro, uma vez que o puro tornou-se união estável, como já visto.

Essa metamorfose, que faz da lagarta (mera união de fato) borboleta (união estável), percorre um caminho relativamente vaga-roso, que tem início na doutrina e em precedentes judiciais (fontes secundárias), assim como, no quase-borboleta, recebe importante ensaio legislativo, com normas cá e acolá, dando a entender que o Estado-legislador se preparava para se posicionar de forma mais compatível com a nova realidade da família brasileira.

Dentre essas normas proféticas, destacam-se: Decreto-Lei 7.036, de 10 de novembro de 1944 e Lei 8.213, de 24 de julho de 1991, sobre acidente do trabalho e de trânsito, prevendo a condição de beneficiária à então concubina; Leis 4.297, de 23 de dezembro de 1963 e 6.194, de 19 de dezembro de 1974, na seara do direito previ -denciário e a Lei 6.216, 30 de junho de 1975, que alterou a Lei dos Registro Públicos (Lei 6.015, 31 de dezembro de 1973), para que a concubina pudesse acrescer ao seu o sobrenome do homem.

3. Casamento e união estável: há hierarquia?

A união estável, tal qual o casamento, é fonte de família (Lôbo, 2008). Isso não significa, como querem alguns, que sejam iguais juridicamente. É defensável essa hierarquização, partindo de um princípio básico, qual seja, não podem ser iguais, pois, do contrário, apenas um dos institutos sobreviveria. Porque haveríamos de ter dois institutos idênticos? A própria exigência de que em ciência os termos têm sentido unívoco impediria essa equiparação dos institutos.

Bastante oportuna a explicação de Diniz (2007, p. 377):

"A união estável foi reconhecida, para fins de proteção especial do Estado, como entidade familiar (...), sem equipará-la ao casamento. (...). Isto é assim, porque a família é o gênero de que a entidade...

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