Estatuto da igualdade racial e suas implicações para a empresa na sociedade pós-moderna

AutorMateus Eduardo Siqueira Nunes Bertoncini - Felippe Abu-Jamra Corrêa
CargoDoutor e Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná - Mestrando em Direito Empresarial e Cidadania pelo UNICURITIBA
Páginas173-201

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Introdução

O Estatuto da Igualdade Racial e suas implicações para a empresa na sociedade pós-moderna é tema que merece ser desenvolvido e estudado, porque somente após muitos anos de escravidão e mais de um século de república, o Brasil se deu conta e assumiu um de seus graves problemas sociais, consistente no preconceito racial sofrido pela população negra de brasileiros, historicamente negligenciada pelo Estado, que jamais adotou uma política pública voltada à superação das desigualdades do passado, as quais ainda se manifestam no presente, em pleno século XXI.

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Apesar de a Constituição de 1988 prever dentre seus objetivos a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou qualquer outra forma de discriminação, somente agora o legislador infraconstitucional desincumbiu-se da tarefa de produzir um Estatuto da Igualdade Racial, na tentativa de fomentar a superação desta forma de preconceito, cuja existência até então era simplesmente negada, sob o argumento de o país vivenciar uma democracia racial, apesar dos fatos não atestarem a veracidade desse discurso.

O reconhecimento da sociedade contemporânea como uma sociedade plural, a crise do positivismo jurídico, a busca da realização da igualdade material, a compreensão do que seja as ações afirmativas, a polémica que cerca o assunto, o papel do Estado, da sociedade e da empresa no enfrentamento da questão racial no Brasil são elementos essenciais para a compreensão do aludido Estatuto, e da função social da empresa privada no seu desenvolvimento, ainda carecedor de estudos no ambiente académico, o que se pode debitar, ao menos em parte, ao pouco tempo de vigência da Lei 12.288/2010.

O que o trabalho propõe é a compreensão do Estatuto da Igualdade Racial na perspectiva da empresa privada, como um dos atores responsáveis pela sua implementação, em vista da função social que possui.

Enfim, visa-se a responder duas questões centrais: qual o papel da empresa privada em relação ao Estatuto (1a); e como o Estado pode contribuir para a implementação da Lei 12.288/2010 no âmbito empresarial (2a).

Pretende-se solucionar essas indagações a partir da análise da doutrina, da jurisprudência e da legislação pertinentes, adotando-se o método dedutivo, sem se olvidar dos elementos histórico e crítico.

1. Pós-modernidade e positivismo jurídico e o reconhecimento dos direitos das minorias na via judicial

A fragmentação da sociedade apresenta-se na pós-modernidade como característica marcante dos tempos atuais e para a qual a igualdade formal do positivismo jurídico de outrora não está apto a enfrentá-la. Uma sociedade plural e

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global marcada por diferenças ideológicas, religiosas, raciais, de género, ligadas à sexualidade etc.

Os profissionais do Direito formados na perspectiva positivista talvez se surpreendam diante desse novo universo, de um novo Direito, produzido para respeitar desigualdades e para, em alguns casos, superá-las, diferentemente do positivismo jurídico do passado, que a todos formalmente igualava.

Cada vez mais o Direito é demandado a resolver situações até pouco tempo não consideradas. Em grande parte das vezes, as pretensões desses grupos sociais minoritários (indígenas, mulheres, idosos, portadores de deficiência, homossexuais, negros etc.) são urgentes, pois dizem respeito a liberdades fundamentais, o que em outras palavras significa que carecem de ação rápida e efetiva do Estado visando a garanti-las, o que vem se efetivando na via judicial, num "deslocamento do polo de tens o entre os poderes do Estado em direç o àjurisdiç o" (STRECK, 2009, p. 1).

Exemplo das mudanças em curso é a relativa aos direitos dos homossexuais. Esse grupo minoritário, objeto de preconceito histórico, não tendo suas demandas ouvidas pelo legislador, viu-se atendido pela atuação do Poder Judiciário que, atento à realidade social, reconheceu a existência de sociedade de fato entre pessoas do mesmo sexo, atribuindo-lhe efeito patrimonial, num determinado caso concreto, em razão do falecimento de um dos integrantes do casal. Destaca-se do voto do Ministro Relator, a necessidade da superação do vetusto Direito legislado e dos preconceitos sociais.

É certo que o legislador no início do século não mirou para um caso como o dos autos, mas não pode o juiz de hoje desconhecer a realidade e negar que duas pessoas do mesmo sexo podem reunir esforços, nas circunstâncias descritas nos autos, na tentativa de realizarem um projeto de vida em comum. Com tal propósito, é possível amealharem um património resultante dessa conjugação, e por isso mesmo em comum. O comportamento sexual deles pode não estar de acordo com a moral vigente, mas a sociedade civil entre eles resultou de um ato lícito, a reunião de recursos não está vedada na lei e a formação do património comum é consequência daquela sociedade. Na sua dissolução cumpre partilhar os bens. (STJ, REsp. 148.897, DJ de 06/04/1998)

O acórdão relativo a esse caso, publicado em abril de 1998, reconheceu a sociedade de fato existente entre pessoas do mesmo sexo. Dez anos depois, em outro caso (Agravo Regimental no Agravo 971.466/SP), nota-se a evolução da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça nessa matéria, pois equiparou esse

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tipo de sociedade à união estável, para fins do reconhecimento do direito do integrante dessa união de ser inscrito como beneficiário do plano de saúde do falecido companheiro. Na fundamentação do voto evidencia-se a referida evolução de entendimento e novamente a omissão do legislador, obrigando o Judiciário a criar soluções para os problemas reais advindos das relações homoafetivas, não previstas nos códigos, em atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana:

Nada em nosso ordenamento jurídico disciplina os direitos oriundos dessa relação tão corriqueira e notória nos dias de hoje.

A realidade e até a ficção (novelas, filmes, etc.) nos mostram, todos os dias, a evidência desse fato social.

Há projetos de lei, que não andam emperrados em arraigadas tradições culturais.

A construção pretoriana, aos poucos, supre o vazio legal: após longas batalhas, os tribunais, aos poucos proclamam efeitos práticos da relação homoafetiva.

Apesar de tímido, já se percebe algum avanço no reconhecimento dos direitos advindos da relação homossexual.

O reconhecimento da sociedade de fato (CC/1916, art. 1.363 - cf. REsp. 148.897/ROSADO) tem servido para a divisão do património amealhado pelo esforço comum.

O INSS, motivado pela Ação Civil Pública n. 2000.71.00.009347-0, editou a Instrução Normativa 25, de 07 de junho de 2000, que estabelece os 'procedimentos a serem adotados para a concessão de benefícios previdenciários ao companheiro ou companheira homossexual'. O ato permite a concessão de pensão por morte ou auxílio-reclusão ao companheiro ou companheira homossexual. Já é clara a relevância dessa relação afetiva no Direito Previdenciário.

Recentemente, em julgado de que participei o TSE (REsp. 24.564/PA), entendeu que o relacionamento homossexual estável gera a inelegibilidade prevista no art. 14, § 7o, da CF. É que, à semelhança do casamento, da união estável e do concubinato presume-se na relação homoafetiva o forte laço afetivo, que influencia os rumos eleitorais e políticos. Por isso, o TSE atestou a existência duma 'união estável homossexual'.

Neste processo, a r. sentença, verdadeira monografia sobre o fato social da homossexualidade, demonstrou que o conceito de união estável não abrange o concúbio entre pessoas do mesmo sexo.

Como disse acima, nada disciplina os direitos oriundos da relação homoafetiva.

Há, contudo, uma situação de fato a reclamar tratamento jurídico. O teor do art. 4o da LICC, em sendo omissa a lei, o juiz deve exercer a analogia.

O relacionamento regular homoafetivo, embora não configurando união estável, é análogo a esse instituto.

Com efeito: duas pessoas com relacionamento estável, duradouro e afetivo, sendo homem e mulher formam união estável reconhecida pelo Direito.

Entre pessoas do mesmo sexo, a relação homoafetiva é extremamente semelhante à união estável.

Finalmente, não tenho dúvidas que a relação homoafetiva gera direitos e, analogicamente à união estável, permite a inclusão do companheiro como dependente em plano de assistência médica.

O homossexual não é cidadão de segunda categoria. A opção ou condição sexual não diminui direitos e, muito menos, a dignidade da pessoa humana.

(STJ, REsp. 971.466, DJ de 04/11/2008)

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Em abono à tese que se sustenta de mutabilidade constante da sociedade e da necessidade de que o Direito esteja aberto a essas mudanças, em recente decisão, até este momento não publicado, o Supremo Tribunal Federal equiparou a união de pessoas do mesmo sexo à entidade familiar, no julgamento conjunto da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 132 e da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 4.277, solucionando essa relevante questão, ainda não enfrentada pelo Poder Legislativo.

Superada pelo próprio STF a discussão sobre a possibilidade do reconhecimento da união estável, já se observam diversos embates judiciais visando a adoção de crianças por casais homossexuais.

Os julgados invocados expressam inequivocamente que o mundo contemporâneo passa por rápidas e profundas transformações, especialmente no que se refere à consciência e aos direitos dos grupos...

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