A estabilidade da firma: o alinhamento esperado do poder de controle na sociedade por ações

AutorJosé Inacio Ferraz De Almeida Prado Filho
Páginas90-113

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1. A firma: função de produção, feixe de contratos e estrutura de governança

O grande interesse mainstream da teoria econômica em explicar o funcionamento dos mercados levou seus integrantes a simplificarem "severamente" os comportamentos do consumidor e da firma. Se o fenômeno a ser explicado era como o sistema de preços coordena o uso de recursos escassos,1 questões sobre o funcionamento interno das organizações representavam complicações desnecessárias.

Para simplificar a análise, a firma emerge como uma simples função de produção; um construto teórico que transforma insumos em produtos, e cujo funciona-mento interno não é relevante para explicar os preços e as quantidades de equilíbrio verificadas no mercado. Raciocínio semelhante é aplicado ao consumidor, que passa a ser considerado um simples conjunto de preferências exógenas e bem comportadas. Embora essas providências tenham permitido à teoria econômica neoclássica explicar bastante bem o fenômeno que ela se propusera a abordar, sua definição, tão distante da firma do mundo real, não permite muita latitude analítica, como percebeu Oliver Williamson.2 Se quisermos estender nossa compreensão do processo econômico para além do funcionamento do mercado, parece necessário, também, ir além da definição neoclássica da firma como função de produção.

A melhor tentativa para isso foi feita porRonald Coase, que sugeriu afirma como um modo de organização alternativo, contraposto ao mercado. Enquanto este coorde-

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naria a produção por meio do sistema de preços, a firma se utilizaria da hierarquia, ao dotar um agente organizador de poder suficiente para dirigir e ordenar a produção. A característica fundamental da firma seria, assim, substituir o sistema de preços pela autoridade na coordenação da produção.34

Williamson também se alinha com a tese coaseana da firma como estrutura de governança, e propõe uma explicação de fundo institucional para sua tomada de posição. Defende que a origem do poder de di-reção, típico da firma, encontra-se nos princípios de Direito que regem a solução dos conflitos intrafirma. Em oposição ao mercado e às formas híbridas de organização, que devem levar imediatamente seus conflitos para solução de um agente imparcial (um juiz de direito ou um tribunal arbitral), a firma poderia, ela própria, solucionar as disputas surgidas entre suas divisões, funcionando como a primeira instância de solução de disputas.5

Williamson argumenta que cada uma das formas genéricas de governança (mercado, formas híbridas e hierarquia) deve ser suportada por princípios de Direito diferentes. Transações operadas em mercado trariam subjacentes princípios de formalismo, rigidez e aplicação estrita das normas legais, conjugados por Williamson sob a denominação de classical contractual law. Transações formalizadas sob formas híbri-das exigiriam um mecanismo contratual mais elástico, com reconhecimento (i) da possibilidade de choques e delimitação de uma faixa para sua tolerância, (ii) de um espaço para negociação e divulgação de informações com vistas à adaptação e (iii) da solução de conflitos por arbitragem -princípios reunidos sob a designação de neoclassical contract law. Subjacente à hierarquia estaria uma forma ainda mais elástica de mecanismo contratual, com apelo ao raciocínio instrumental e à composição mútua, e sem possibilidade de recurso a um fórum externo de decisão -princípios reunidos por Williamson sob o rótulo deforbearance law.6

A firma passa, então, a ser vista como uma forma de coordenação que provê, via poder hierárquico, alto grau de adaptabilidade e um mecanismo interno de solução de disputas. Nas palavras de Williamson, a continuação do mercado por outros meios: o poder defiat.

A idéia de um poder hierárquico de direção nas transações intrafirma, a resolver os problemas de adaptação por simples fiat, não contou com adesão plena. Autores como Alchian e Demsetz7 abandonaram a visão da firma como função de produção, mas relutam em enxergar nela a existência de relações sujeitas a uma adaptação administrada. Na visão desses autores, a firma

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surge para organizar situações de teampro-duction (isto é, casos onde a produção depende da cooperação de mais de um agente, mas não é possível separar a contribuição de cada um no resultado final), mas se caracteriza como um conjunto de contratos sujeito às mesmas fricções do mercado. Sua nota particular é que esse feixe de contratos se encontra unificado sob uma parte centralizadora, que exerce as funções de monitoramento e direção de acordo com poderes e faculdades idênticos àqueles dos contratos celebrados no mercado.8

Harold Demsetz9 também sugere que a explicação sobre a existência e os limites da firma exige que se vá além dos problemas de monitoramento e custos de transação. Ainda que as características da coordenação típica da firma - isto é: (i) especialização na produção para terceiros; (ii) associação de longo prazo; e (iii) direção consciente para guiar a utilização dos recursos - sejam, em algumas hipóteses, mais produtivas em função de questões de monitoramento e custos de transação, o autor sugere que devem ser incorporados, ainda, aspectos informacionais de aquisição e uso do conhecimento.10

Demsetz defende que a organização econômica precisa refletir o fato de que o conhecimento é custoso de ser produzido e aprendido, de forma que a direção estabelecida intrafirma substitui o processo de aprendizado e permite a interação entre diversos especialistas em campos de conhecimento diferentes.11 Não resta dúvida de que esse detour de Demsetz em direção a uma visão da firma como conjunto de com-petências é interessante, mas o ponto que me parece importante sublinhar é seu reconhecimento da coordenação dirigida que se verifica intrafirma. Ainda que não seja expressamente reconhecida a idéia da firma como estrutura de governança hierárquica, Harold Demsetz já parece bem menos avesso à possibilidade de uma coordenação mais estrita nas relações intrafirma, em contraposição à visão puramente contratual exposta em conjunto com Armen Alchian anos antes.12

Talvez o equívoco mais importante da visão estritamente contratual esteja em supor que as regras jurídicas que regem todas as transações econômicas sejam as mesmas, ignorando aspectos institucionais relevantes. Como apontado por Scott Mas-ten, a verdadeira questão para se determinar a natureza da firma não é verificar se as relações nela contidas têm, ou não, natureza contratual.13 Responder se a firma detém poder de fiat exige avaliação detalha-

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da das normas jurídicas e institucionais que regem a atividade econômica, com vistas a identificar se os mecanismos, prerrogativas, sanções e incentivos associados às transações intrafirma contemplam vantagens capazes de qualificá-la como uma estrutura de governança, a utilizar um poder de coordenação mais intenso que as operações fechadas em mercado.14

Apenas uma análise das instituições jurídicas e políticas que disciplinam as transações poderá esclarecer a natureza e os limites da firma. Empreendo essa pesquisa no item seguinte, circunscrevendo-me apenas às sociedades por ações.15 Argumento que o marco institucional reservado às companhias lhes confere poder de coordenação superior àquele disponível para contratações em mercado, e passo, então, a uma análise da estabilidade deste poder (n. 3); as conclusões finais são apresentadas na seqüência (n. 4).

2. A verificação da hierarquia: o poder de controle nas sociedades por ações

A existência de um poder hierárquico parece absolutamente clara nas relações trabalhistas entre a companhia e seus empregados. Afinal, a existência de trabalho remunerado, não-eventual, pessoal e subordinado é justamente o que qualifica uma relação de emprego, distinguindo-a das outras relações contratuais da sociedade anônima. Esse poder de comando fica evidente na leitura do art. 2o da CLT, que define como empregador o agente que, as-sumindo os riscos da atividade econômica, contrata e dirige a prestação do trabalho assalariado.

Para além da hierarquia entre a companhia e seus empregados, verifica-se sempre a estruturação de relações de subordinação entre os próprios funcionários da empresa, com cargos de direção, gerência, chefia e, finalmente, os "colarinhos azuis". Cada um desses níveis deve obediência ao escalão superior e exerce poder sobre os empregados do nível abaixo, devendo ser ressaltado que os incentivos intrafirma estão organizados justamente para que essa cadeia de comando seja obedecida: as conseqüências das ordens provindas do escalão superior se produzirão sobre o patrimônio da companhia, e não sobre o do funcionário que as executar. Isso enfraquece os incentivos intrafirma, favorecendo um grau maior de obediência e divulgação de informações por parte do empregado, e, ao mesmo tempo, encoraja maior intensidade no monitoramento e supervisão das operações intrafirma pelos órgãos superiores.16

No Direito Brasileiro o tratamento legal da relação trabalhista parece conduzir à noção da firma como estrutura de governança, corroborando os atributos de maior flexibilidade, autoridade e vantagem infor-macional normalmente atribuídos à organização interna. As razões são bastante semelhantes àquelas que levaram Scott Mas-ten à mesma conclusão ao abrigo do Direito Norte-Americano.17 No restante deste

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item estendo a investigação para o direito...

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