Especismo religioso

AutorFábio Corrêa Souza de Oliveira
CargoCoordenador do Centro de Direito dos Animais, Ecologia Profunda, Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ - CNPQ)
Páginas161-220

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1. Introdução: religião e Direito dos animais; o animal religioso

A pergunta inicial, cuja resposta explica este artigo, é: por que abordar a questão religiosa na compreensão do Direito dos Animais1É efetivamente importante? As considerações religiosas são relevantes ou determinantes para uma teoria dos direitos dos animais, especialmente tendo em conta a secularização que prevalece (ou parece prevalecer ou se propõe a capitanear) na doutrina jurídica/filosófica contemporânea? Não se estará aqui a investir em uma seara dispensável e mesmo contraproducente ao Direito dos Animais? Não seria melhor simplesmente desconsiderar referências religiosas?

Esclareça-se preliminarmente que se apreende religião no recorte de fenômeno histórico, cultural; o conjunto (díspar, antagônico) de crenças humanas acerca de Deus ou de algo transcendental-metafísico, fonte da lógica universal, responsável e condutor da vida, da criação, seja, portanto, convergente ou não em uma divindade (monoteísmo) ou em divindades (politeísmo). Sem embargo, as concepções religiosas investigadas são todas personalistas, afirmam a existência de uma divindade (ou mais de uma).

É certo que nem toda teoria de direitos - e esta, como já anotado, é a tônica da atualidade da Filosofia e (da Filosofia) do Direito - está alicerçada, quanto mais confessadamente, em di-tames religiosos/espirituais. É notório que o Direito Natural, em que pese o apontado eterno retorno, notadamente o de cariz divino, está hoje praticamente abandonado, congrega, pelo menos aparentemente, poucos e muitas vezes envergonhados adeptos. As denúncias que dão conta do caráter relativista (histórico, cultural) das religiões (dos seus mandamentos, das suas profissões

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de fé), o que enseja crucial paradoxo já que estas procuram se erguer e pregar pelo absoluto (invariável, imutável, atemporal, eterno), dos absurdos perpetrados (violências variadas, torturas, assassinatos, genocídios, guerras) em nome de Deus, da salvação da alma, além da composição com os donos do poder (instituições religiosas, elas próprias donas do poder, em conflito entre si pelo poder, entre a cruz e a espada), fatores de dominação, controle individual/social, embebidos da secularização política, econômica, levaram a um generalizado descrédito quanto a tais instâncias como lugares confiáveis, seguros, aptos a sediar ou balizar direitos e deveres. A religião em xeque(-mate?).2Daí se retratar a hodierna sociedade humana como pós-metafísica. O desencantamento: Deus está morto, o céu está vazio, estamos sós. Cresce o niilismo, o agnosticismo, o ateísmo.

Nada obstante movimentos em sentido contrário, as instituições/autoridades religiosas perderam força, poder de coesão, uniformidade, regência. Se o quadro ostenta cores mais intensas na geografia ocidental, em uma tradição européia e americana, a tinta já fica mais nítida em outros locais, onde o Estado não é laico. O Papa Bento XVI afirmou que os católicos devem se conformar em ser igreja de minoria. Com ares de unanimidade, a produção jusfilosófica não busca a fundamentação dos direitos humanos em qualquer instância não-humana, em uma ordem estabelecida pelo Criador ou derivada da natureza das coisas.3Muito embora tal contexto divisado, existem vetores em sentido contrário, o que é próprio do processo dialético. Seja como for, conquanto uma teoria de direitos não demande uma filiação espiritual/religiosa, o fato é que as diversas convicções desta matriz, agora e ao longo do tempo, influenciaram ou se dispuseram a influenciar o reconhecimento do status jurídico, moral, a identificação e distribuição de direitos e obrigações. Isto inclusive de maneira inconsciente ou intermediada por outros corpos ou formulações. Aliás, como o Direito dos Animais é uma teoria de direitos dos animais e não uma teoria de deveres dos animais para com os humanos, um óbice que se alega colidente: as

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religiões se edificam sobre a noção de dever, de compromisso, bem como do seu descumprimento, o pecado, a culpa, a expiação. Ora: como incorporar à dimensão religiosa quem não possui dever para com Deus, para com o outro? Neste passo, vale notar, até a danação, a condenação ao inferno, é interditada aos animais. Mesmo porque, afirma-se, os animais não conhecem o arrependimento. A porta (do céu e do inferno) está fechada a eles por não possuírem senso de moralidade, logo inaplicável a lógica do merecimento.

Contudo, basta um passar de olhos pelo panorama do Direito dos Animais para notar as inúmeras referências religiosas encontradas amiúde, denotando um esforço para construir um arquétipo compatível com a percepção espiritual, computada a diversidade de assimilações. É o que explica a tese de que Jesus era vegetariano (ou vegano) ou de que não era, contra a sua vontade, porque o momento histórico não permitia; a tese de que Jesus não pregou o vegetarianismo porquanto as pessoas da época não entenderiam; ou a tese de que pregou, mas aqueles que o sucederam suprimiram este ensinamento. A Revista dos vegetarianos, de ampla circulação, em bancas de jornais, estampou, na sua edição nº 10, a pergunta: "Era Jesus vegetariano?" Qual a importância de saber isto? De indagar acerca da dieta crística? Se para muitos nenhuma, para outros a relevância é muita.4Na mesma linha, o apelo suscitado pela questão explica Francisco de Assis aparecer reiteradas vezes em listas de vegetarianos. É o que explica um segmento na linha espírita sustentar que os animais têm alma e mesmo a metempsicose, apesar de tais assertivas não constarem da Codificação (Kardec). O mesmo motiva a labuta de reinterpretar trechos do Velho Testamento em dissonância com a leitura usual e mesmo em tensão com a linguagem redacional empregada, com a tradição. Isto sem mencionar a proibição categórica, pelo próprio Deus, de comer carne, como se assevera a partir dos Vedas; pilar, por exemplo, entre os chamados Hare Krishnas.

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Por que o apelo a conotações religiosas no âmbito do Direito dos Animais? Porque a teoria dos direitos animais, consoante concebida por muitos, não é indiferente à religião: a religião é tida como um fator elementar ou mesmo indispensável a fim de conferir solidez, coerência ou aceitabilidade à doutrina dos direitos dos animais. Se tomarmos a Ecologia Profunda em foco, veremos que considerações espiritualistas, que religious views estão ou podem estar presentes, ocupando o nível 1 do diagrama desenhado por Arne Naess, aquele onde estão sediados os fundamentos últimos ou premissas (supporters) da Deep Ecology. Assim, os conceitos de Ecosophie e de self-realization. Entre os nomes mais proeminentes da Ecologia Profunda, alguns declaram publicamente a sua afinidade teológica, como Arne Naess, Bill Devall e Fritjof Capra.

Todavia, o que impulsiona e delineia este estudo não é o exame da religião enquanto arrimo ou pauta para o Direito dos Animais, em uma feição positiva, de contribuição para levantar a consciência da dignidade intrínseca dos seres não-humanos. O que se faz por ora é uma análise de caracteres religiosos refratários ou impeditivos do Direito dos Animais, ou seja, a mira está no aspecto negativo. Isto é: como dogmas, assertivas espirituais, da teologia, constituem obstáculo ou rejeição à admissão da titularidade de direitos para além da espécie humana. A religião, mote central formador do senso comum, é poderoso ingrediente do caldo cultural avesso ao Direito dos Animais. E, apesar de algum enfraquecimento, não pode ser subestimada ou relegada na investigação da problemática concernente à imagem que os seres humanos, majoritariamente, têm dos seres não-humanos e das relações que mantêm com eles. É lugar-comum: Se Jesus comia peixe, como objetar tal prática? Argumento de autoridade: Se o filho de Deus (ou o próprio Deus) adotou tal dieta, que arrogância apregoar diferente! Afinal, a pretensão é ser mais do que Jesus?

O argumento anterior, que pode soar simplório ou irrelevante para uns, é determinante para tantos outros. Por exemplo, negar

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que os animais possuem alma, como já se afirmou para as mulheres, negros, índios, é pressuposto ou estratégia de dominação. Esta, junto com outras sentenças, colaborou sobremaneira para naturalizar a subjugação dos animais. Ora bem: é induvidoso que, se o cristianismo (ou o catolicismo) tivesse abraçado o vegetarianismo, a idéia de que toda vida conserva valor inerente, a situação dos animais, da natureza, seria deveras distinta, melhor. Igual se diga para o islamismo, para o judaísmo. Enfim, a rigor, para a generalidade das religiões, inclusive - contadas as diferenças de entendimentos ontológicos, mais favoráveis, ao menos potencialmente, aos demais seres, vez que na aceitação, e.g., que toda entidade viva detém alma - o hinduísmo (ou parcela dele), o budismo (ou parcela dele). Como se sabe, há budistas que comem carne e budistas que se opõem peremptoriamente a isto. Para tais comunidades, a discussão acerca do consumo de carne, peles, entre outras condutas, incorpora eminentemente o componente religioso, dado prejudicial para o juízo de concordância ou de discordância com tais práticas. É, pois, no campo religioso que a reflexão ou a conversação são postas.

Interessa abordar a religião no que tange ao Direito dos Animais por dois motivos: 1º) a opressão humana diante dos animais pode ser entendida, ao menos parcialmente, tendo por esteio receituários religiosos; 2º) a religião pode ser libertária, abolicionista da exploração humana perante os animais. Calha registrar que sentimentos como bondade, amor, caridade, compaixão, muito...

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