O espaço da mulher no desporto

AutorFernanda Bazanelli Bini
Páginas31-40

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A relação da mulher com o esporte nunca foi algo simples, sem lutas ou sem a quebra de barreiras ou paradigmas. Aliás, a própria relação da mulher com a sociedade também se deu da mesma forma, motivo pelo qual não se pode falar em uma mulher atleta, treinadora, gestora ou líder, sem que sejam também levadas em conta as lutas das mulheres pelo reconhecimento de seu próprio valor. Daí as coisas acabarem por se misturar.

Houve muita luta, muita ousadia, muita determinação. Desde os Jogos da Antiguidade a mulher, ainda que de forma isolada, manifestava seu desejo interno de igualdade. Conta a história que às mulheres não era dado o direito de acompanhar os Jogos Olímpicos naquela época. As regras eram tão rígidas que o próprio art. 5º do Regulamento dos Jogos previa a pena de morte nos casos em que mulheres casadas ousassem assistir às competições1.

Justificavam-se tais medidas alegando-se que a mulher poderia sofrer danos fisiológicos, devido a sua fragilidade e mesmo ao acesso íngreme dos locais das provas.

No entanto, o que se conclui é que para os gregos a cidadania estava intimamente ligada à função de guer-rear, o que era vedado às mulheres, fazendo com que estas fossem apenas vistas como mães, sendo excluídas, portanto, da vida pública da sociedade naquela época.

Mas há sempre quem resista. E é por conta desse ímpeto feminino, dessa ousadia, desse desejo interior pela igualdade e por espaço, que atitudes simples puderam mudar o rumo da história, senão, no mínimo, das regras até então existentes para que, mais a frente, pudessem sofrer novas modificações.

E nos próprios Jogos da Antiguidade isso acabou por acontecer em determinado momento. Caripátida desobedeceu as regras. Disfarçou-se de treinador vestindo uma túnica a fim de ver seu filho Psidoro competir. E ele venceu. E Caripátida invadiu a arena para abraçar seu filho e dali foi descoberta2. As regras, no entanto, tiveram que mudar. A mesma, que deveria ter uma sentença de morte não foi condenada, especialmente por vir de uma família influente de campeões olímpicos. Dali em diante, no entanto, treinadores não mais foram permitidos utilizar túnicas3.

Ainda que a restrição da mulher não tenha sido superada porquanto a regra mudou, apenas e tão somente, para dificultar eventuais problemas semelhantes, seu recado foi dado. Portanto, é de tempos que a mulher demonstra sua força, e é dessa fonte, dessa ideia, que a sociedade precisa se apropriar.

Na Idade Média a mulher participava das mesmas atividades esportivas que os homens, mas no século XVII a perda de direitos pelas mulheres, sendo subjugadas pelo marido ou pelo ente masculino mais próximo, acabou por afastar as mulheres das atividades desportivas. E isso causou um longo e enorme estrago.

Apenas no século XVIII e início do Século XIX a mulher começa a retomar o acesso aos esportes quando

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alguns cavalheiros ingleses passaram a levar suas esposas para assistir eventos como o boxe, remo e corridas de cavalos4.

No entanto, a mentalidade sobre a fragilidade do corpo feminino e sua possibilidade de masculinização por meio do esporte ainda era dominante e as práticas desportivas entre as mulheres nada incentivadas.

Paralelamente a esse cenário, a revolução industrial e a evolução da sociedade fora colocando mais mulheres nas ruas, seja pela necessidade econômica, seja pela própria necessidade de força de trabalho, permitindo que as mesmas, mesmo com direitos menores que os homens, tivessem sua parcela de contribuição para a economia de uma forma mais direta. Os tempos e a própria sociedade foram mudando.

Com o retorno dos Jogos Olímpicos ao final do Século XIX, já na Era Moderna, obviamente as discussões foram se acirrando quanto a uma possível participação das mulheres em tais competições. É que, naquela época, muitas mulheres já trabalhavam, estavam nas ruas e muitos pais, cientes dos benefícios do esporte incentivavam suas filhas à prática dos mesmos, desenvolvendo, naturalmente, o desejo feminino de poder fazer parte também desse universo.

Ocorre que, por força do entendimento do Barão de Coubertin, mulheres não deveriam participar dos Jogos Olímpicos senão apenas e tão somente como espectadoras. Ao que parece – há controvérsias – Coubertin não apenas não concebia a possibilidade das mulheres participarem dos Jogos, como também era fielmente contrário a essa inovação. Para ele as mulheres deveriam restringir-se a cuidar dos filhos, enquanto as competições desportivas seriam um atrativo aos homens. Uma Olimpíada com a presença feminina não seria prática, nem interessante, nem estética e nem correta, essas eram as palavras de Coubertin quando indagado acerca da hipótese de inclusão das mulheres nos Jogos5.

De toda sorte a não participação das mulheres naquele primeiro ciclo Olímpico foi um fato. Mas, como na história, os casos isolados tem muito a dizer sobre a força feminina, eis que surge Stamati Revithi, mais tarde lembrada como Melpomene que, extraoficialmente percorreu o caminho da maratona feito pelos homens naqueles Jogos, provando que sim, as mulheres teriam resistência o suficiente para encarar tamanhos desafios.

Um dos grandes argumentos para a exclusão das mulheres dos Jogos Olímpicos era, de que estas, especialmente para a prática do atletismo, não teriam a resistência suficiente para aguentar os desafios impostos e inerentes à modalidade, o que restou claramente superado quando Stamati Revithi completou o percurso em quatro horas e meia, mais rápido do que muitos homens naquela competição tornando-se a primeira mulher a enfrentar os obstáculos esportivos da era moderna6.

Ainda que extraoficialmente, sua força e determinação para concluir todo o percurso, por certo abriram os olhos de todos para uma nova realidade.

Foi então que, já nos segundos Jogos Olímpicos da Era Moderna, em 1900 (Paris), pela primeira vez é dado o direito às mulheres de participar, o que fez com que 22 mulheres pudessem atuar em diferentes modalidades, como o tênis e o golf7, considerados adequados por não haver contato físico e por serem considerados esteticamente belos. Ainda havia certas restrições, mas as portas se abriam para o futuro que estava por vir.

Os preconceitos, embora existentes, foram caindo e, ano após ano, Jogos após Jogos, mais modalidades e mais mulheres faziam parte do leque de competições disponíveis para o sexo feminino. Patinação no gelo, arco e flecha, vela e barco a motor, ainda que acompanhadas, nestas últimas, por seus maridos. A natação veio logo em seguida, em 1912, Jogos que contaram com a participação de 48 mulheres, naquele ano, em Estocolmo.

Em 1916 não houve Jogos Olímpicos por conta da Primeira Guerra Mundial mas, no ano seguinte, outra mulher de fibra aparece no cenário desportivo, a fran-cesa Alice Melliat. Devido aos obstáculos criados tanto pela Federação Internacional de Atletismo como pelo próprio COI em permitir às atletas mulheres, a prática de atletismo, a atleta de remo fundou a Federação Esportiva Feminina Internacional, com o objetivo de acompanhar os recordes e promover as competições e as práticas de esportes pelas mulheres, realizando com isso os Jogos Mundiais Femininos em 1922 e 1923 e mesmo os Jogos Olímpicos Femininos em Pais, em 1922, o que acabou por pressionar os órgãos internacionais a abrir o devido espaço para as provas femininas.

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Vale ressaltar que Alice Melliat foi a primeira mulher a receber o diploma de remadora de longa distância em 1912 no clube Parisiense Feminina Sport e teve seu primeiro cargo administrativo no esporte em 1915, tornando-se depois presidente do clube, numa época em que já se proliferava a prática desportiva e a criação de clubes esportivos na França8. Tal menção é de suma importância para atestar a qualidade não apenas da mulher como força desportiva, mas também como força estratégica e de gestão em uma época machista e extremamente preconceituosa.

E ai elas não pararam mais. Em Antuérpia, em 1920 foram 65 mulheres competindo, 135 em 1924 em Paris. Em 1928 em Amsterdã foram 277. Com 126 mulheres em Los Angeles em 1932, o número sofreu uma pequena redução por conta da crise econômica mundial mas, em 1936 em Berlim, 331 mulheres se fizeram representar na competição9.

No Brasil as coisas sempre demoravam um pouco mais. Os ventos que sopravam da Europa tinham um leve delay, o que custava ao Brasil um pouco mais de tempo no alcance de tamanhas conquistas.

O cenário era de uma sociedade de raciocínio machista e de um ambiente familiar extremamente patriarcal. No regime das Ordenações Filipinas a que o País estava sujeito, não poderia a mulher, praticar quase nenhum ato sem a autorização do marido, que por vezes tinha a liberdade de aplicar castigos corporais à mulher e aos filhos o que veio a ser afastado apenas em 1890 com a implantação do Regime Republicano no Brasil10.

Enquanto as mulheres na Europa desafiavam as novas ordens, o Código Civil de 1916 (Lei n. 3.071 de 1º de janeiro de 1916) no Brasil ainda pregava uma realidade antiquada. Menções específicas feitas nos arts. 6º, 240 e 242 traduzem o entendimento do que representava a mulher, especialmente casada, àquela época, na sociedade brasileira.

Art. 6º São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ou à maneira de os exercer:
I. Os maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos (arts. 154 a 156).
II. As mulheres casadas, enquanto subsistir a socie-dade conjugal.
III. Os pródigos.
IV. Os silvícolas.

Parágrafo único. Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, e que cessará à medida de sua adaptação. (Vide Decreto do Poder Legislativo n. 3.725, de 1919).

Art. 240. A mulher assume, pelo casamento, com os apelidos do marido, a condição de sua companheira, consorte e auxiliar nos encargos da família.

Art. 242. A mulher não pode, sem autorização do marido:
I. Praticar os atos que este não poderia sem o consentimento da mulher.
II. Alienar, ou gravar de ônus real, os imóveis de...

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