Esfera pública, democracia discursiva e legitimação das agências reguladoras no Brasil

AutorMarcelo Lennertz
CargoLLM, Yale Law School; Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio.
Páginas71-105
Esfera pública, democracia discursiva e
legitimação das agências reguladoras no
Brasil*
Marcelo Lennertz**
1. Introdução
O processo de surgimento das agências reguladoras no Brasil é parte de
uma série de reformas institucionais implementadas na década de 1990,
que resultaram no que se tem denominado “modelo regulador de Esta-
do”1. Diferente do modelo anterior, caracterizado pela intervenção direta
do Estado na economia através das empresas estatais, o Estado regulador
foi idealizado a partir do discurso segundo o qual apenas as denominadas
“atividades exclusivas” deveriam ser exercidas diretamente pelo Estado,
enquanto que as “atividades não-exclusivas” deveriam ser delegadas à ini-
ciativa privada2, sob a supervisão estatal.
* Este artigo tem sua origem em dissertação defendida para a obtenção do título de Mestre em Ciências
Jurídicas pela PUC-Rio: Agências Reguladoras e Democracia no Brasil: Entre Facticidade e Validade (dispo-
nível em: http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0610349_08_pretextual.pdf).
** LLM, Yale Law School; Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio. Email:
mr_lennertz@hotmail.com.
1 Esta é a denominação adotada pela maioria dos juristas brasileiros, que se apóiam num conceito jurídico
de regulação (ver a respeito: ARAGÃO, 2004). Paulo Mattos, porém, prefere utilizar a expressão “novo
estado regulador”, em razão de adotar um conceito econômico de regulação, segundo o qual qualquer
forma de intervenção na economia por parte do Estado pode ser classif‌icada como atividade de regulação
estatal. Ver a respeito: MATTOS, 2006a, p. 33 e ss.
2 Ver a respeito: BRESSER PEREIRA, 1997.
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De acordo com o Plano Diretor da Reforma do Estado – PDRAE3, a pri-
vatização de atividades essenciais – ainda que não-exclusivas do Estado – à
sociedade, deveria vir acompanhada da criação de entidades regulatórias
tecnicamente especializadas, dotadas de alto grau de autonomia política e
capazes de estabelecer, com a agilidade e f‌lexibilidade necessárias, marcos
normativos voltados para a correção de falhas de mercado e maximização
do bem-estar social. Em alguns setores, essas entidades regulatórias foram
constituídas sob a forma de agências reguladoras4.
Todavia, desde sua criação, as agências reguladoras foram – e continu-
am sendo – objeto de críticas relacionadas, principalmente, a um suposto
déf‌icit de legitimidade democrática de sua atuação como agentes elabora-
doras de políticas públicas. O principal alvo dos ataques seria o alto grau
de autonomia política decisória – em relação aos agentes públicos eleitos
– de que gozam essas entidades administrativas5. Isso porque, se, do ponto
de vista econômico, a justif‌icativa dessa autonomia reside na necessidade
de previsibilidade e de prevalência de critérios técnicos para a tomada de
decisão6 – e, portanto, de blindagem contra interferências políticas indevi-
das –, das perspectivas jurídica e política não há uma justif‌icativa capaz de
gerar consenso quanto ao elevado grau de autonomia decisória atribuído a
uma instituição formada por dirigentes que não foram eleitos pelo povo e
que não estão sujeitos à accountability eleitoral.
É nesse sentido que se verif‌icam, entre boa parte dos juristas, ques-
tionamentos quanto à atuação de formulação de políticas públicas dessas
entidades, que, de forma explícita ou não, gravitam em torno do tema de
sua legitimidade democrática7.
3 Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE). Plano Diretor da Reforma do
Aparelho do Estado. Brasília: Presidência da República/Imprensa Of‌icial, setembro de 1995.
4 Sobre o processo de formação das primeiras agências reguladoras brasileiras, ver: NUNES, 2007.
5 Esse alto grau de autonomia – muitas vezes denominado “independência” – das agências reguladoras é
entendida como a ausência de subordinação hierárquica dessas entidades aos órgãos do Poder Executivo, o
que, na prática, faz com que o Conselho Diretor da agência seja a última instância decisória administrativa
em matérias de sua competência. Fundamentais para que seja assegurada a independência das agências
seriam a sua autonomia orçamentária e f‌inanceira e a impossibilidade de exoneração ad nutum (GUERRA,
2005, p. 15) dos seus dirigentes (ARAGÃO, 2004, p. 1; SUNDFELD, 2006, p. 24) – nomeados por mandato
determinado (SUNDFELD, 2006, p. 25) – pelo Poder Executivo.
6 Ainda que, como destacado por Mattos, dentro da técnica existe espaço escolha política (MATTOS,
2006a, p. 248).
7 Esse é o caso, por exemplo, das alegações de que esse tipo de atuação pelas agências seria vedado por
conta da proibição constitucional de delegação legislativa, ou que ela representaria uma usurpação de
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O objetivo do presente estudo é analisar a consistência de uma pro-
posta teórica que procura abordar o tema da legitimidade democrática da
atuação de elaboração de políticas públicas das agências reguladoras no
Brasil com apoio no conceito de democracia discursiva proposto por Jür-
gen Habermas8. Mais especif‌icamente, tratarei do modo como Mattos9 bus-
ca construir uma saída teórica para o problema da formulação de políticas
públicas por entidades administrativas burocraticamente insuladas numa
democracia por meio da compreensão dos mecanismos de participação po-
pular institucionalizados nos processos decisórios dessas entidades – nota-
damente, as consultas públicas – como espaços potencialmente capazes de
gerar decisões democraticamente legítimas.
Para tanto, apresentarei, inicialmente, a proposta teórica de Mattos,
buscando reconstruir a maneira pela qual o autor incorpora em sua obra
insumos da teoria discursiva da democracia e do direito de Jürgen Haber-
mas (2). Em seguida, explorarei as implicações para a tese de Mattos do
não enfrentamento do tema da necessidade de adaptação do modelo dis-
cursivo de esfera pública política para sua utilização no Brasil (3). Ao f‌inal,
em sede de conclusão (4), resumirei as principais idéias apresentadas no
texto e sustentarei minha posição acerca da proposta de Mattos.
2. Democracia discursiva e as agências reguladoras brasileiras
O trabalho de Mattos tem o caráter declarado de uma proposta de rup-
tura com o que o autor identif‌ica como “o padrão de análise jurídica da
questão da legitimidade das agências reguladoras”10. Isso porque, segundo
competências institucionais do Poder Legislativo, ou, ainda, que violaria o princípio da separação dos
Poderes. Como explica Mattos, tal questão tem como pano de fundo a tensão entre insulamento burocrático
e legitimidade no debate sobre Estado e democracia no Brasil (MATTOS, 2006a, pp. 226 e segs.).
8 Essa perspectiva teórica se insere num projeto mais amplo desenvolvido pelo Núcleo de Direito e
democracia do CEBRAP, do qual Paulo Todescan Lessa Mattos foi pesquisador. De forma resumida, pode-se
dizer que o percurso teórico percorrido por Jürgen Habermas para solucionar o problema dos fundamentos
da legitimidade do Direito e do poder administrativo nas sociedades modernas consiste na reconstrução da
idéia de Estado de Direito na modernidade sobre as bases de um novo tipo de racionalidade – a racionalidade
comunicativa –, o que pressupõe a possibilidade de que o poder comunicativo gerado nas esferas públicas
informais, constituídas no mundo da vida, possa ser institucionalizado através da política e do medium do
Direito, a f‌im de inf‌luenciar a Administração Pública e o mercado. Ver a respeito: HABERMAS, 2003a, I.
9 Mattos, 2006a.
10 Logo na introdução de sua obra, af‌irma o autor: “Os modelos de análise predominantes na doutrina
jurídica brasileira em matéria de direito administrativo e direito econômico não são, a meu ver, suf‌icientes
para compreender a complexidade do funcionamento do Estado regulador e, principalmente, as condições
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