Consentimento livre e esclarecido na pesquisa envolvendo seres humanos - A distância entre o "dever ser" e o "ser"

AutorAdriana Estigara
CargoAdvogada. Professora e mestranda em Direito Econômico e Social pela PUC-PR
Páginas5-11

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Introdução

O presente artigo tem por escopo o estudo do "Consentimento Livre e Esclarecido" para as pesquisas envolvendo seres humanos, bem como o documento dele resultante, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), enquanto "dever ser", isto é, sob os ângulos ético (Bioética) e legal-normativo (Biodireito), e "ser", sob o ângulo fático, a partir da realidade denunciada pela doutrina.

Almeja-se com esse contraste verificar se a prática envolvendo o processo de obtenção do Consentimento Livre e Esclarecido e sua documentação efetivamente respeita ou ao menos granjeia elementos para respeitar o referencial bioético da "autonomia" do sujeito da pesquisa1 .

Para o desenvolvimento do proposto e como o estudo do Consentimento Livre e Esclarecido insere-se na temática Pesquisa Envolvendo Seres Humanos, faz-se necessário, preliminarmente, um breve esboço a respeito, para, na seqüência, abordarse o Consentimento Livre e Esclarecido, no que tange ao seu conceito, ao histórico de seu surgimento e desenvolvimento, aos seus elementos essenciais, ao tratamento dispensado pela legislação.

Por fim, à vista da formatação ética e legal do

Consentimento Livre e Esclarecido e de sua confrontação com a sua execução na prática, lançaremos conclusões atinentes ao respeito do referencial ético da autonomia, como proposto.

1. Pesquisas envolvendo seres humanos
1.1. Conceito

Pesquisa é um tipo de atividade estruturada para desenvolver ou contribuir para o conhecimento generalizável, assim entendido como aquele acessível a toda a sociedade. Esse conhecimento generalizável consiste em teorias, princípios ou relações, ou acúmulo de informações em que se baseiam, que podem ser corroboradas por métodos científicos.

No contexto da pesquisa envolvendo seres humanos, ocorre um estreitamento quanto ao objeto da pesquisa, por se referir tão-somente aos estudos médicos e de comportamento relativos à saúde humana. A Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 196/96, em seu item II.2, dispõe que é a "que, individual ou coletivamente, envolva o ser humano de forma direta ou indireta, em sua totalidade ou partes dele, incluindo o manejo de informações ou materiais."

Tem-se, portanto, que a pesquisa envolvendo seres humanos destina-se a desenvolver ou contribuir para o aumento do conhecimento e sua generalização, no que se refere a estudos médicos e de comportamento relativos à saúde humana.

1.2. Referencial Bioético e a Regulação pelo Estado (Biodireito)

Qualquer que seja a forma eleita para a pesquisa em seres humanos, ela sempre envolve riscos e é quase sempre invasiva, razão pela qual existe ampla preocupação com o resguardo da dignidade do sujeito da pesquisa em suas dimensões física, psíquica, moral, intelectual, social, cultural ou espiritual, bem como com a observância dos quatro referenciais básicos da Bioética2: Autonomia, Beneficência, Não-maleficência e Justiça.

O princípio da autonomia prima pelo direito das pessoas de decidirem sobre as questões relacionadas ao seu corpo e à sua vida, de forma que quaisquer atos médicos ou de pesquisa devem ser autorizados pelo paciente, dizendo José Roberto Goldim que "sobre si mesmo, seu próprio corpo e mente, o indivíduo é soberano"3 .

O princípio da beneficência manda promover o bem e evitar o mal4; em função disso, o profissional ou pesquisador deve ter a maior convicção e informação técnica possíveis que assegurem ser o ato médico ou de pesquisa benéfico ao paciente. Como o princípio da beneficência proíbe infligir dano deliberado, esse fato é destacado pelo princípio da não-maleficência, o qual estabelece que a ação do médico ou pesquisador sempre deve causar o menor prejuízo ou agravos à saúde do paciente5.

Por fim, o princípio da justiça estabelece como condição fundamental a obrigação ética de tratar cada indivíduo conforme o que é moralmente correto e adequado, de dar a cada um o que lhe é devido. O médico ou pesquisador deve atuar com imparcialidade, evitando ao máximo que aspectos sociais, culturais, religiosos, financeiros ou outros interfiram na relação médico-paciente. Os recursos devem ser equilibradamente distribuídos, com o objetivo de alcançar, com melhor eficácia, o maior número de pessoas assistidas6.

É exatamente em função do incondicional respeito aos parâmetros éticos que as pesquisas envolvendo seres humanos demandam toda uma estruturação, a qual é objeto de regulação e fiscalização pelo Estado, através do chamado Biodireito7.

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Todos esses princípios ora cotejados encontram-se consagrados por documentos internacionais voltados à proteção do ser humano e, a nível nacional, pela Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 196/96, que atualmente regula as pesquisas em questão. Esta exige o respeito à autonomia do ser humano, elegendo o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) como instrumento de manutenção dessa autonomia; exige ponderação entre riscos e benefícios atuais e potenciais, individuais e coletivos, e o comprometimento máximo de benefícios e o mínimo de danos e riscos (beneficência), sempre evitando-se o mal (não-maleficência) e diz ser importante a relevância social da pesquisa e a minimização dos ônus para os sujeitos vulneráveis, demonstrando acolhida ao princípio da justiça8.

Digna de mérito é a Resolução CNS nº 196/96, por ensejar a reflexão ética constante, por um estruturado sistema de controle social9 e declarar que a pesquisa em seres humanos deve ser a ultima ratio, isto é, realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter não possa ser obtido por outro meio (item III.3 da Resolução CNS nº 196/96).

Feito esse breve apanhado a respeito das pesquisas envolvendo seres humanos, cumpre, agora, estudar o Consentimento Livre e Esclarecido e o seu respectivo Termo, o TCLE, tais como vislumbrados nos aspectos ético (Bioética) e legal-normativo (Biodireito).

2. O Consentimento Livre e Esclarecido como "dever ser"
2.1. Conceito

Trata-se o Consentimento Livre e Esclarecido de uma decisão voluntária, realizada por pessoa autônoma e capaz, após um processo informativo e deliberativo, visando à aceitação de um tratamento específico ou experimentação, sabendo da sua natureza, das suas conseqüências e dos seus riscos10. A emissão dessa decisão vem corporificada no documento Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

A exigência desse consentimento decorre da observância aos parâmetros éticos na pesquisa com seres humanos, ditados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), pelo Código de Nuremberg (1947), pelos Códigos Deontológicos e de Ética Médica, pelas Diretrizes Internacionais propostas para a Pesquisa Biomédica em Seres Humanos (1985) e, no contexto brasileiro, especialmente pela Resolução CNS nº 196/96 e pelas resoluções de temáticas específicas que se lhe seguem e que contemplam também as diretrizes internacionais.

2.2. Breve histórico das pesquisas envolvendo seres humanos e da obtenção do consentimento dos pacientes e dos sujeitos da pesquisa

Com o presente tópico objetiva-se demonstrar que o desenvolvimento da teoria acerca do "Consentimento Livre e Esclarecido" e seu Termo (TCLE) deu-se inicialmente no contexto dos tratamentos médicos, estendendo-se depois para as pesquisas, de modo a sofrer modificações ao longo do contexto histórico, sendo mister verificá-las11.

Já em 1767, questiona-se a atitude de médicos ingleses que não consultaram o paciente para o tratamento de uma fratura óssea em sua perna.

Em 1830, John William Willcock publicou livro no qual apresentou a base jurídica para a utilização do consentimento informado em pesquisa com pacientes.

Três anos mais tarde, surge o primeiro documento estabelecendo normas de relação entre um pesquisador (William Beaumont) e um sujeito de pesquisa (Alexis St. Martin), dado o interesse em observar o interior do estômago deste, em função de ter uma seqüela de um tiro acidental de uma arma de fogo.

Na seqüência, em 1880, Tribunal da Noruega condena médico por realizar pesquisa sem autorização antecipada do pesquisado.

Em 1884, Pasteur propõe testar vacina contra a raiva em condenados à morte no Brasil, sem solicitar autorização prévia.

Proposição de lei, em 1990, nos EUA, pelo senador Jacob H. Gallinger, para regulamentar os experimentos em seres humanos, consubstanciando-se no primeiro documento legal a estabelecer normas claras sobre a pesquisa, entre elas, autorização do sujeito da pesquisa, avaliação prévia de riscos envolvidos.

Em 1901, o Governo da Prússia aprova lei, estabelecendo a informação e a autorização expressa como componentes básicos do consentimento.

Editada em 1931, o Ministério das Relações Interiores da Alemanha aprova "Diretrizes para Novas Terapêuticas e Pesquisa em Seres Humanos", tornando imprescindível o consentimento.

Em 1946, o Conselho Jurídico da Associação Médica Americana contempla a expressão consentimento, afirmando que a pesquisa deveria ser a ultima ratio, e que o consentimento desses deveria ser voluntário.

Em razão da desconsideração da "autonomia" do ser humano nos campos de concentração nazistas, em que prisioneiros hebreus, poloneses, russos, italianos, de acordo com atas do processo de Nuremberg, foram submetidos a cruéis experimentações de remédios, de gás, de venenos12, editou-se, em 1947, o Código de...

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