Relações de Trabalho Terceirizadas no Serviço Público

AutorAny Ávila Assunção - Ulisses Borges de Resende
Ocupação do AutorMestre e Doutora em Sociologia Jurídica pela Universidade de Brasília. Advogada. Professora do Centro Universitário IESB e da Universidade de Brasília - Mestre e Doutor em Sociologia Jurídica pela Universidade de Brasília. Advogado Sindical. Professor do Centro Universitário IESB e da Universidade de Brasília.
Páginas142-160

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A realidade atual vem exigindo dos pesquisadores envolvidos com a temática da violência e dos direitos humanos um maior esforço para compreender as mudanças recentes, especificamente, no que se refere ao debate sobre a reestruturação econômica e sua incidência no mundo operário, pois as relações de trabalho terceirizadas, movidas pelo capitalismo "feroz", vêm relegando, a segundo plano, as preocupações com os direitos sociais e com as condições de equidade entre os(as) trabalhadores(as).

A tendência à exclusão social que se apresenta por meio da precarização dos direitos dos(as) trabalhadores(as) terceirizados(as) tem como uma de suas principais causas a sujeição à situações de violência nas suas variantes materiais e simbólicas.

Observa-se uma dada incapacidade do poder público em gerir, atender e fazer valer os direitos sociais destes(as) trabalhadores(as), acentuando-se, mais ainda, esse quadro de quebra de cidadania, que, sob o signo do preconceito e da discriminação, instauraram estratégias sutis de violência nas relações de trabalho.

Nessa perspectiva, o objetivo deste artigo é tecer algumas reflexões acerca de determinadas práticas de violência que ocorrem nas relações de trabalho, especificamente, no que toca as tendências do processo de reestruturação produtiva ao terceirizar os serviços públicos. Ao buscar tal compreensão, tomou-se como cenário empírico o processo de terceirização ocorrido nos serviços públicos de limpeza urbana de uma cidade do Brasil, onde a entidade pública (denominada, nesta pesquisa, de "Entidade A") em setembro de 2000, transferiu a executoriedade desses serviços para uma empresa privada, então denominada neste trabalho de "Entidade B". Para tanto, o estudo focaliza, precipuamente, as consequências provocadas, no âmbito das relações de trabalho, pela terceirização. Vale dizer que, no contexto da terceirização em foco, a análise da produção/intensificação de episódios de violência, manifestados nas práticas de relações

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de exclusão social, segregação ocupacional e dos indícios de discriminações que lhe são subjacentes no ambiente de trabalho, são diretamente remetidos às novas condições de organização do trabalho.

É nesse sentido que se coloca a presente investigação/reflexão: destina-se a focalizar as práticas de violência, sob o olhar das suas diversas modulações materiais e simbólicas, nas relações de trabalho terceirizadas no serviço público. Desvelá-las, identificá-las e analisá-las, privilegiando a perspectiva do(a) trabalhador(a) é a proposta deste estudo.

Tratando-se da análise das práticas de violência, vivenciadas nas relações de trabalho terceirizadas no serviço público de limpeza urbana de uma cidade (capital) do Brasil, o estudo não pode ficar alheio à compreensão do sistema de reestruturação produtiva e a sua expansão para dentro da máquina estatal. Nesse contexto, torna-se importante também analisar, as repercussões e os reflexos na saúde e nos direitos sociais dos(as) trabalhadores(as). Tal entendimento é fundamental para a relação do fenômeno da violência aos dilemas do mundo do trabalho com as suas decorrentes fissuras. A presença destas etapas é reveladora, pois aponta um redimensionamento da prática econômica e, via de consequência, da esfera do trabalho, inserindo-se em um mosaico complexo de situações matizadas por atos e estados de violência com a consequente quebra da cidadania.

Colocadas em relação constante, as categorias violência-trabalho-saúde-cidadania permitem lançar luz, não somente no que diz respeito à frequência de adoecimento, aos acidentes e ao sofrimento, mas, antes disso, à própria condição de humano do(a) trabalhador(a), que remete à ideia de dignidade humana.

Portanto, as relações diretas decorrentes das situações de violência-trabalho-saúde-cidadania também são analisadas na perspectiva de compreender os fatores desencadeantes de episódios e manifestações de violência, juntamente com a quebra dos direitos sociais.

Feitas essas considerações introdutórias, pode-se sintetizar o problema central deste artigo na seguinte questão: em que medida a terceirização dos serviços públicos propicia ou intensifica situações e práticas de discriminação, segregação, exclusão e desumanização na esfera do trabalho - ou seja, produz práticas de violência?

Partindo-se da percepção de que os fenômenos sociais são dinâmicos e se movimentam em uma constante interação, a violência não pode ser entendida como um complexo estanque e isolado que paira sobre a sociedade. Ao contrário, circula, envolve e interage com os demais atores sociais e fenômenos que habitam a sociedade.

1. A violência nas relações de trabalho

As transformações que vêm afetando todo o espectro das relações sociais, inclusive o quadro laboral e institucional da sociedade em que se produzem, lançam bases para distintas possibilidades de reorganização social, bem como à origem de um novo modo de produção: as terceirizações.

Segundo Antunes (2001: 17), paralelamente à mundialização produtiva, a lógica do sistema produtor de mercadorias, desprovido de orientação humanamente significativa, vem convertendo a concorrência e a produtividade em um processo autodestrutivo, gerando altas taxas de precarizados, desempregados e violência no trabalho. Destaca, ainda, que na era da reestruturação produtiva, das flexibilizações e das desregulamentações, a classe trabalhadora encontra-se mais fragmentada e mais complexificada:

(...) existindo um enorme incremento do subproletariado fabril e de serviços, o que tem sido denominado mundialmente de trabalho precarizado, em que os trabalhadores são conhecidos como terceirizados, subcontratados, part-time, entre tantas outras formas assemelhadas, que proliferam em inúmeras partes do mundo. (ANTUNES, 2001: 19)

Nesse quadro Singer (1999) e Castel (1998) assinalam a questão da marginalização e da segregação de uma massa de trabalhadores(as) do circuito dos direitos legais, como também das condições de saúde e de sofrimentos físico-psicológico-mental decorrentes da prática de atos de violência.

Desemprego e precarização do trabalho, vulnerabilidade social, condições de baixa autoestima e degradação das condições de vida, permeados por formas diversas de violência e incivilidades que corroem os padrões de sociabilidade e interação social, são fatos evidentes que vêm transformando as relações sociais, dando uma dimensão perversa quanto aos rumos que vêm tomando a modernização econômica dos últimos anos.

Nesse sentido, Viana (2001) sublinha o fato de que o processo de produção capitalista possui uma

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dinâmica que aponta para a necessidade do aumento da extração de mais-valor, resultando em conflitos, em repressão e em resistência, e, quando o capital consegue submeter o trabalho, produz outras formas diversificadas de violência, inclusive, mais intensas; e, destaca, dentre outros exemplos, as doenças, os acidentes e as mortes provocadas pelo processo do trabalho e, o próprio desgaste físico por trabalho penoso. Tal assertiva, pode ser confirmada por meio do depoimento de um trabalhador de limpeza urbana da empresa terceirizada - "Entidade B" -, cuja atividade é a coleta do lixo:

A gente vive assim: todo dia é a dor no corpo, no músculo, até novalgina é difícil de tirar; outra hora, é a cabeça que rola no chão, como aconteceu com um colega da gente, que esticou o corpo, a cabeça mesmo, um pouco mais pra fora, acho que pra tomar mais vento, pra afastar a catinga, na hora que o caminhão tava andando e veio o outro caminhão, e cortou fora (...) todo dia tem acidente, se não é grave, é muito grave (....) ou então é "lesera".

Assim, pode-se dizer que as formas de violência nas relações de trabalho resultam do processo de reestruturação produtiva que o capitalismo engendra, cuja percepção pode ser mais fácil em alguns casos - tais como os acidentes de trabalho -; em outros, manifesta-se de maneira mais sutil e dissimulada (VIANA, 2001).

Nos espaços de trabalho, as relações são estabelecidas entre um superior - que "geralmente" manda - e um inferior - que está submetido à hierarquia do sistema e naturalmente obedece - que por si só, faz brotar um ambiente propício ao surgimento de tensões, e, por sua vez, aos atos e aos estados de violência. As condições de trabalho portam, então, uma relação de força e, com ela, as marcas da violência - nem sempre visíveis - e, consequentemente, a marca dos valores da sociedade em que é gerada (ASSUNÇÃO, 2002). Nos espaços de trabalho, as exigências para atender à lógica do capitalismo fazem emergir os estados de violência, nos quais os(as) trabalhadores(as) acabam por construir uma prática de submissão para contorná-la que mutila e suplicia os seus corpos (FOUCAULT, 2002b). Os gestores do capital, embora cônscios dessas práticas presentes nas relações de trabalho, não as evitam, ao contrário, delas se beneficiam para buscar alcançar os seus fins de lucratividade.

Assim, no plano social, as mutações nos processos produtivos forjam uma nova realidade nas relações de trabalho ao instaurar novas formas de conflitos. O processo de reestruturação capitalista ao modificar as condições de trabalho e aspectos organizacionais impõe ou contribui, por conseguinte, para a configuração de novas formas de controle social (ELIAS, 1994).

Nesse toar, as possibilidades de eclosão de práticas de violência nas relações sociais - em particular nas relações de trabalho - são alimentadas por múltiplos fatores nas suas mais diversas simbolizações (BOURDIEU, 2002): na hipersolicitação dos corpos, na pressão direta da hierarquia, nas jornadas prolongadas, na desigualdade social de tratamento, no...

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