Anotações sobre a exclusão de sócios por falta grave no regime do Código Civil

AutorMarcelo Vieira Von Adamek
Páginas111-134

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1. Introdução

A exclusão1 de sócios por falta grave tem previsão nos arts. 1.030 e 1.085 do Código Civil: o primeiro dos artigos, que se encontra dentro do capítulo reservado à disciplina das sociedades simples, trata da exclusão judicial e, de forma subsidiária ou remissiva, se aplica a todos os demais tipos societários contratuais; o segundo artigo, por sua vez, regula a exclusão extrajudicial e tem incidência restrita às sociedades limitadas.

Note-se, portanto, que, exceção feita à sociedade limitada, não cabe exclusão extrajudicial de sócio, fundada na alega-ção de falta grave no cumprimento de suas obrigações, em sociedade simples ou sociedade contratual que, supletivamente, se valha de suas regras:2 em primeiro lugar,

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porque o art. 1.085 do Código Civil está dentro do capítulo reservado às sociedades limitadas e não há, na disciplina dos demais tipos societários, regra que àquele artigo faça remissão; em segundo lugar, porque, tal como expressamente enuncia o art. 1.030 do Código Civil, nas sociedades simples, o sócio apenas poderá ser "excluído judicialmente" por falta grave; e, em terceiro lugar, porque, não fosse a literali-dade dos citados preceitos legais, a alteração convencional do quadro societário de sociedade simples pressupõe a unanimidade (CC, arts. 997,I e IV, e 999), inviabilizando a expulsão de sócio por efeito de simples deliberação majoritária. Conse-quentemente, expedientes oblíquos que busquem eludir a incidência de regras legais imperativas e, com isso, viabilizar a expulsão extrajudicial do sócio indesejado em sociedade simples (ou mesmo em sociedade limitada, sem observância dos pressupostos legais autorizadores), como amiúde se verifica através do uso disforme de procurações, hão de ser reputados absolutamente inválidos (CC, arts. 166, VI, e 167).3

Deve ainda ser mencionado que, conquanto o art. 1.030 do Código Civil trate da exclusãojudicial de sócio e o art. 1.085 daquele mesmo diploma regule a exclusão extrajudicial nas sociedades limitadas, ambos os preceitos legais enfocam uma mesma realidade: exclusão de sócio por falta grave no cumprimento de seus deveres sociais - sem que, entre as respectivas hipóteses de incidência dos artigos, exista diferença de gradação ou de intensidade da conduta a justificar a drástica medida; não há hipótese de falta grave que possa ser censurada por uma regra e não pela outra. Dito o mesmo de outra forma, não existe diferença semântica ou valorativa entre "falta grave no cumprimento de suas obrigações" (CC, art. 1.030) e "atos de inegável gravidade que possam colocar em risco a continuidade da empresa" (CC, art. 1.085); em ambos os preceitos, o legislador mirou uma mesma realidade, em que pese a distinta forma de expressão verna-cular empregada na redação dos artigos.45 Escusando lembrar que o art. 1.030 não se refere a "continuidade da empresa" pela óbvia circunstância de regrar a exclusão nas sociedades simples que, por definição, não são empresárias (CC, art. 982).

Em qualquer hipótese, não se admite a exclusão parcial de sócio.6

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2. Exclusão por falta grave: juízos de proporcionalidade e igualdade de tratamento

A exclusão de sócios, pouco importando a forma de implementá-la, constitui drástica medida que só se legitima na presença de falta grave qualificada e sempre como ultima ratio, cedendo assim espaço a outras medidas que, objetivamente, sejam aptas a efetivamente eliminar o problema verificado no âmbito interno da sociedade. É o que, juntamente com Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França, tivemos a oportunidade de registrar, noutro estudo: "a exclusão configura medida de direito estrito e de caráter excepcional que, a par de sujeitar-se aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (obstando, com isso, possa ser utilizado por encomenda contra um sócio específico, tendo por base condutas idênticas às dos demais ou, afortiori, menos graves do que outras toleradas ou consentidas no seio social), só se legitima desde que atendidos os pressupostos (materiais e procedimentais) estabelecidos, de maneira cogente, em lei (CC, arts. 1.030 e 1.085) e sempre como ultima ratio7 (cedendo espaço a outras medidas capazes de eliminar o problema verificado no seio social)".8

Portanto, não é toda e qualquer falta que pode legitimar a exclusão de sócio, mas somente aquela falta qualificada como "grave" - ato de inegável gravidade que, tendo pertinência com a posição jurídica de sócio,9 inviabilize ou coloque em risco a própria continuidade da atividade social, tal como, de forma enfática, isso expressou o nosso legislador.10 Falta grave é, portanto, apenas aquela que objetivamente tenha essa agudeza (de "inegável gravidade"), e não a que, discricionária ou arbitrariamente, assim a pretenda qualificar a maioria. No direito brasileiro, portanto, não há espaço para a exclusão de sócio fundada na mera vontade da maioria, sem que haja justa causa a ampará-la, ou, o que dá no mesmo, exclusão de sócio vazia, imotivada ou sem justa causa; por isso também, é nula a cláusula contratual que a pretenda contemplar, direta ou indi-retamente.11 Também não se justifica, a

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nosso ver, a exclusão fundada na alegação de quebra de affectio societatis - consequência de algum evento que, este sim, desde que configure falta grave, poderá então legitimar a exclusão.1213

Na aferição da justa causa para a exclusão, têm inteira aplicação os princípios da proporcionalidade e da igualdade de tra-

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tamento14 - ambos, princípios estruturantes do moderno direito societário -, por efeito dos quais se obsta que a medida de expulsão possa ser utilizada contra sócio que não cometeu falta efetivamente grave; ou que se venha a qualificar como grave, por encomenda contra um sócio específico, conduta idêntica à adotada pelos demais ou, afor-tiori, menos graves do que outros comportamentos tolerados, consentidos ou, por vezes, até mesmo incentivados no seio so-cial.15 "Falta grave" é conceito legal indeterminado que deve ser concretizado à luz

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da realidade específica da sociedade. É preciso, pois, em cada caso, avaliar o comportamento dos demais sócios: se todos eles são igualmente responsáveis por uma dada conduta e sobre o excluendo não repousa falta claramente preponderante, não se admite a exclusão arbitrária de um ou alguns deles em benefício dos demais, igualmente responsáveis16 - até porque, neste particular, ser ou não maioria, não é critério de desempate ou de abono de conduta.

A ideia de proporcionalidade (razoa-bilidade e adequação dos meios aos fins), por sua vez, norteia as exigências, antes referidas, de que a exclusão esteja calcada apenas em falta grave qualificada, e não qualquer falta, e que, na medida do possível e daquilo que possa ser exigido dos demais sócios em concreto (o que depende da estrutura real da sociedade), tenham precedência meios de sancionamento menos intensos,17 desde que capazes de efetiva-mente eliminar o problema verificado no âmbito interno, restando a exclusão como ultima ratio.

2. 1 Falta grave superveniente

A falta grave legitimadora da exclusão, de regra, há de estar calcada em fatos posteriores ao ingresso do sócio na sociedade, conforme observou Renato Ventura Ribeiro: "A exclusão do sócio somente pode ser justificada por fato superveniente ao seu ingresso na sociedade. Se os sócios conhecem determinada situação relacionada a outro membro e mesmo assim admitem seu ingresso e permanência na sociedade, assumem os riscos e os ônus da escolha. Não podem, pois, reclamar. Na lição do direito romano, quem escolhe mau sócio só de si deve se queixar (D. 17,2, 72; I. 3, 25, 9)".18

Pode ocorrer, no entanto, que determinados fatos pretéritos não sejam do conhecimento dos demais sócios e, nessas situações excepcionais, também não é de se afastar a possibilidade de exclusão, desde que se possa positivar a existência atual de uma falta grave, que guarde relação com a situação jurídica de sócio, ainda que, total ou parcialmente, embasada em fatos pretéritos.

2. 2 Falta grave atual

Ajusta causa para a exclusão deve ser atual: se a falta grave é conhecida de todos e não é punida ao longo de meses, pode resultar numa presunção relativa de perdão. Ou, consoante registra Karsten Schmidt, amparado na jurisprudência alemã, "os demais sócios não precisam, como na hipótese de ação anulatória de deliberação assemblear, intentar a ação dentro de um prazo próprio. Quando os demais sócios, de conhecimento de todos os fatos, não fazem uso de seu direito de exclusão durante meses, pode isso significar uma presunção

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relativa de extinção do fundamento de exclusão (BGH LM Nr. 11 = NJW 1966, 2160; NJW-RR 1993, 1123, 1125; LM § 161 Nr. 127 = NJW 199, 2820, 2821; OLG CelleNZG, 199, 167)".19

De fato, a conduta questionável de um sócio pode receber ulterior assentimento dos demais ou, então, a falta grave ser objeto de perdão ou renúncia, obstando o exercício do poder de exclusão,20 mas isso desde que o ato provenha ou possa ser imputado à coletividade de sócios, e não apenas a um deles individualmente.

Mesmo quando algum ato extintivo ou preclusivo do...

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