Considerações sobre o sistema financeiro. Crises. Regulação e re-regulação

AutorHaroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Páginas9-31

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Introdução

Nos dias que correm praticamente todas as pessoas (naturais e jurídicas), ou seja, as famílias e as empresas segundo a linguagem da economia, estão umbelical-mente ligadas aos bancos. Podemos não gostar deles, os bancos e/ou os banqueiros, mas não podemos mais viver sem eles. Talvez isto não seja verdade em algum país ou comunidade de economia de mercado inexistente ou estritamente marginal (Coréia do Norte e Cuba, respectivamente a título de comparação), mas, justamente por serem marginais, não contam. E mais dia menos dia, mesmo aquelas pessoas que são hoje não-clientes bancários (os sem-ban-co), serão alcançados por serviços oferecidos pelas instituições financeiras desde que venham a existir agentes doadores de recursos, de um lado, e agentes receptores do outro,1 aproximados entre si pela inter-mediação efetuada por aquelas empresas.

Muitas vezes considerados grandes inimigos sociais por uma parte mal informada da coletividade, os bancos têm proporcionado enormes vantagens à sua clientela ao longo de toda a sua história, que não se resume ao âmbito interno das relações diretas. Conforme foi possível a Pedro P. Romero2 aquilatar com base em estudos econômicos encontrados no estado da técnica, talvez o papel fundamental desempenhado pelos bancos na economia moderna esteja em proporcionar liquidez não apenas em favor de empresários pelo financiamento dos seus projetos, mas entre seus próprios credores ou depositantes, dos dois lados do balanço, significativamente a um preço mais baixo do que aquele propiciado, eventualmente, por meio do recurso a outras fontes, em relação às quais o custo de transação será mais elevado. Tra-

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ta-se de aplicar aqui o mesmo conceito estabelecido por Coase3 quanto aos custos de transação quando se vai ao mercado e quando se organiza uma empresa. A utilizar os mecanismos favorecidos por esta, os custos são sensivelmente mais baixos até por conta de alguma previsibilidade futura.

Observa-se, ainda, que as crises econômicas, como a que agora vivemos nos planos internacional e nacional, acarretam sensível aumento da inadimplência, nascida no sistema financeiro, que dela se retro-alimenta também em um processo danoso de círculo vicioso. Um quadro crítico como esse, por sua própria natureza, demanda soluções dotadas de um bom nível de certeza quanto ao direcionamento das decisões e quanto ao tempo em que virão a ser implementadas.

Neste trabalho pretendemos abordar brevemente alguns problemas ligados às operações bancárias no plano sistêmico, procurando tirar lições proveitosas da crise deflagrada em 2007, já passados mais de dois anos de sua eclosão. Nunca é demais destacar a importância nesta área da existência de um diálogo permanente entre a economia e o direito. A primeira fornece os fundamentos sobre os quais o segundo exerce a sua função normativa, nos planos repressivo ou punitivo e preventivo. A primeira abordagem diz respeito à análise de como se enfrentou o problema nas diversas economias afetadas e, quanto à segunda, o que será feito para que fenômeno semelhante não se repita no futuro. Os mais realistas dirão que sempre haverá outras ocorrências da espécie, devendo cuidar-se para que o seu tamanho jamais seja tão grande.

1. A natureza das operações bancárias e o campo de sua atividade

Vejamos em primeiro lugar alguns aspectos da atividade bancária, pertinentes aos objetivos deste estudo.

Como se sabe, nas economias de mercado os bancos atuam na busca de lucros (mesmo os chamados bancos públicos, pois a sua atividade não é, e nem pode ser, beneficente, caso contrário, a capacidade operacional se esgotaria imediatamente quando o último centavo do capital fosse entregue a terceiro, sem a obrigação de retorno do principal e de um acréscimo que remunerasse a atividade, os riscos assumidos e que a permitisse crescer de forma contínua mediante apropriação de parte dos resultados). A diferença global entre a porcentagem dos valores em jogo que o banco repassa a terceiros e o que ele recebe de volta é o seu lucro bruto, sobre o qual incidirão diversas despesas e imposições fiscais antes que se apure o lucro líquido.

Sem lucro os bancos desapareceriam. Com lucro mínimo eles tão-somente sobreviveriam, correndo o risco de padecerem de inanição diante de uma crise mesmo pequena, que exaurisse suas parcas reservas. Há um segredo indecifrável no sentido de saber-se qual seria o tamanho bom ou ótimo de um banco em determinado mercado e numa determinada época. O papel de mago disposto a desvendar este mistério parece que tem sido reivindicado pelo CADE no direito brasileiro, ao entender-se competente para discernir a respeito dos atos de concentração bancária. O problema estará em descobrir uma bola de cristal que funcione. Na dúvida, e evidentemente tendo em conta dados históricos, estima-se necessário um montante bastante elevado de capital para as instituições financeiras, conforme os tipos de operações que elas praticam4 e, além disto, cercando-o de diversos mecanismos de segurança para a garantia de sua higidez.5

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Bancos fortes significam uma economia forte e não é por outra razão que no direito comparado a quebra dos bancos é tratada, de longa data, de forma especial em relação às empresas que operaram em outros mercados. Somente deles se aproximam em relação a um tratamento diferenciado na quebra as seguradoras, as entidades de previdência privada, os planos privados de saúde, entre outras poucas entidades. Todos apresentam como elemento comum uma repercussão negativa intensa no mercado especial em que operam e, em grau decrescente a partir dos bancos, efeitos danosos na economia como um todo.

Observe-se que no Brasil existe uma diferença operacional entre os bancos públicos e os bancos privados. Isto se dá porque, em primeiro lugar, aos primeiros foi outorgada uma competência especial na Lei 4.595/1964, que os constituiu como órgãos auxiliares da política de crédito do Governo Federal. Por outro lado, o Banco do Brasil S/A recebeu da mesma lei a responsabilidade pelo desempenho de diversas atribuições específicas, algumas delas posteriormente reformuladas. Por este motivo, esta instituição federal chegou a ser classificada dentro do Sistema Financeiro Federal (SFN) como banco central de segunda linha.

Não é o caso de desenvolver o tema neste estudo, mas a história dos bancos públicos tanto federais como estaduais (principalmente estes últimos) ficou marcada pelo seu uso político, com grandes prejuízos gerados ao longo de algumas décadas, os quais geraram a necessidade de enfren-tamento do risco sistêmico que eles causaram por meio de um programa de salvamento especial, o PROER.6

2. Aspectos da crise de 2007

Podemos dizer que há tantas explicações para a mencionada crise quanto o nú-mero de autores que escreveram sobre ela, embora se possa concluir pelo reconhecimento comum da existência de um núcleo de fatores sobre os quais a grande maioria dos analistas concorda.

Sua profundidade e alcance a colocam sem dúvida no topo do patamar de fenômenos equivalentes na história da economia internacional, tendo recebido alguns epítetos significativos para designá-la como a aposta que implodiu Wall Street (bet that blew up Wall Street) e a pior invenção de Wall Street (worst Wall Street in-vention).7

Na opinião Michal Kempa, um pesquisador europeu, três causas operaram em conjunto para a crise, caracterizada no sistema do Euro por uma acumulação de liquidez e pelo aumento do nível da taxa de juros, quais sejam: (i) atritos no comércio; (ii) frustração da liquidez esperada; e (iii) elevado risco de crédito. Na visão daquele analista nenhuma das três causas era capaz de, isoladamente, deflagrar a aludida crise, mas em conjunto elas determinaram tal resultado.8

Na descrição do autor citado, um mecanismo maligno específico foi posto a funcionar nas condições especiais que se apresentavam pré-crise, inerentes ao fato de que os investidores se viram diante de baixíssimas taxas de juros, passando a buscar altos rendimentos, fazendo aplicações em ativos de maior risco e de alta alavan-cagem. O aumento significativo da liquidez no mercado gerou o efeito de um perigoso bumerangue. Isto porque, na medida em que determinada seção do mercado era objetivada como alvo das operações, o aumento da liquidez reduziu a volatilidade e os ganhos esperados. Desta maneira, os in-

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vestidores foram levados (forçados) a se moverem em busca de ativos de risco maior, em busca de maiores ganhos. Ao mesmo tempo, os bancos comerciais, utilizando-se do modelo originate and distri-bute, realizaram operações que lhes permitiram transferir o risco para contrapartes obtendo liquidez para novas operações.9 Isto se deu em uma cadeia de negócios sucessivos, com diversas securitizações se acumulando umas sobre outras, formando pilhas.

Dentro do quadro acima, observa Mi-chal Kempa, tecnicamente os bancos deveriam ter criado entidades separadas, ou seja, StructuredInvestment Vehicles - SIV (veículos de investimento estruturados), os quais estavam ligados aos bancos que os originaram, mas que não se encontravam registrados nos seus balanços. Podemos acrescentar que esta falta de transparência tornou extremamente problemática a análise dos riscos envolvidos nas operações em geral, os quais somente se tornaram conhecidos, em um caminho inverso, quando da deflagração da crise.

Este modelo operacional não representaria o fim do mundo, mesmo porque, segundo o pesquisador em foco, ele vinha sendo largamente utilizado durante muitos anos, permitindo distribuir o risco entre...

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