Anotações sobre o princípio da função social da empresa na doutrina e na jurisprudência brasileira

AutorGustavo Milaré Almeida
Páginas240-286

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1. Introdução

O presente estudo tem por objetivo contextualizar o princípio da função social da empresa à luz da Lei n. 11.101, de 9.2.2005 (doravante denominada "LREF"), a fim de apresentar a forma como este tem sido visto modernamente pela doutrina e pela jurisprudência nacional na apreciação de questões relativas a processos de recuperação judicial.

A LREF consagrou o princípio da função social da empresa. Esse é, aliás, o pilar de sustentação dessa norma1 e veio ao encontro dos reclamos que, há tempos, ecoavam na nossa comunidade jurídica e, mais recentemente, no empresariado brasileiro,2 na medida em que o Decreto--lei n. 7.661, de 21.6.1945 (revogada "Lei

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de Falências") já não se prestava mais a solucionar satisfatoriamente as novas situações de crise econômico-financeira do devedor decorrentes da evolução socioe-conômica brasileira.

Com efeito, após longo período de tramitação do seu projeto, a LREF veio à lume, visando recolocar o Brasil no mesmo patamar dos países mais ricos e desenvolvidos, mediante a formação de um novo sistema concursal que, fundado no balanceamento entre modernos princípios econômicos e segurança jurídica das partes envolvidas, produzisse um processo eficaz.3

Assim, por um lado, a LREF modificou a finalidade da falência, que deixou de ter como meta a mera execução coletiva dos bens do falido, na qual se buscava a melhor arrecadação para os credores com o menor ônus para devedor, para focar-se na preservação e na otimização da utilização produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da empresa (art. 75). Por outro, buscando prevenir ou superar a falência, referida norma criou o denominado processo de recuperação de empresas, que pode ser judicial ou extrajudicial.4

Com o intuito de cumprir o objetivo traçado para o presente trabalho, inicialmente, examinar-se-á os fundamentos constitucionais e legais que embasam o princípio da função social da empresa insculpido na LREF, a fim de melhor compreender a visão moderna da doutrina a seu respeito, para, em seguida, abordar o entendimento jurisprudencial que lhe vem sendo dado mediante essa perspectiva, o que se fará pela análise de decisões judiciais significativas sobre o tema.5

Antes, porém, cumpre fazer um breve resgate histórico do surgimento da LREF, visando apresentar a forma pela qual o princípio da função social da empresa, ob-jeto deste estudo, foi consagrado em nosso ordenamento jurídico vigente.

2. Breve resgate histórico do surgimento da LREF

Como mencionado, a LREF surgiu da incapacidade do Decreto-lei n. 7.661/ 1945 de responder eficazmente às modernas situações de crise econômico-financei-ras do devedor, oriundas das transformações socioeconômicas operadas não apenas no seio da sociedade brasileira, mas, também, no mundo, com a globalização dos mercados.

Nelson Abrão destaca que tal inadequação do Decreto-lei n. 7.661/1945 em nosso ordenamento jurídico também decorreu da dissonância entre o seu espírito e a época em que entrou em vigor. Isso porque tal norma foi promulgada logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando o legislador ainda não tinha tido tempo suficiente de examinar e ponderar as profundas modificações socioeconômicas que se assentariam como consequências da nova ordem mundial estabelecida com o término desse conflito, momento histórico que, nas suas palavras, "foi o clímax da revelação da influência do Direito Econômico que, tendo nascido com a Primeira Guerra Mundial, ganhou impulso na época posterior à Segunda".6

De fato, embora o Decreto-lei n. 7.661/1945 tenha surgido no pós Segunda Guerra Mundial - período da chama-

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da terceira fase dos procedimentos con-cursais, baseada, por sua vez, na ideia de preservação da empresa sempre que esta se mostrasse viável economicamente -, a mentalidade do legislador que a elaborou ainda estava arraigada à segunda fase dos procedimentos concursais, formada após a Primeira Guerra Mundial e caracterizada pela excessiva e isolada preocupação com o pagamento dos credores.7

Como assevera Alessandra de Azevedo Domingues, "o referido Decreto-lei nasceu velho, revelando uma preocupação demasiada com a figura dos credores, privilegiando a falência e abortando tentativas de reestruturação de empresas que eram viáveis e poderiam voltar a ser lucrativas. Favorecia o ganho individual dos credores em detrimento da perda de empregos, de geração de riquezas e perda econômica para a sociedade, indo na contramão da tendência mundial dos sistemas concursais pautados na preservação da empresa".8

Essa obsolescência da revogada legislação falimentar não demorou a ser constatada pelos estudiosos do assunto. Tanto é assim que, já na década de 1970, formou-se doutrinariamente em nosso país a teoria da preservação da empresa.

Esse movimento coadunou-se com a doutrina que vinha sendo desenvolvida internacionalmente, que, anos antes, já havia vislumbrado o atraso técnico de diversos institutos reguladores da crise econômico--financeira da empresa e, por isso, pregava a necessidade de uma revisão urgente nos sistemas falimentares, a fim de que fosse viabilizada a efetiva preservação daquela empresa devedora.9

Assim, no Brasil, diversos autores passaram, de um lado, a criticar a falência e a concordata, as quais, pelo atraso da revogada legislação, haviam se tornado instrumentos hábeis para o devedor desonesto desviar seus bens, fraudar seus credores ou protelar ao máximo o seu pagamento e, de outro, a propugnar pela modernização da lei, de forma que fossem garantidos mecanismos de sobrevivência da empresa, a fim de resguardar tanto o interesse dos seus próprios credores, quanto da sociedade como um todo.10

Nesse sentido, também nessa época, Paulo Fernando Campos Salles de Toledo afirmava que "a industrialização de nosso país acentuou-se a partir da década de 1950. Portanto, a realidade econômica para a qual se dirigia a Lei de Falências ao entrar em vigor é uma realidade que hoje não mais existe. Com isso verificou-se a total defasagem entre a Lei de Falências e o que ela visa regular. A maior crítica que se pode fazer à Lei de Falências atual, é a de não prever a reorganização da empresa, a de ter a respeito dessa matéria uma visão antiquada, ultrapassada, arcaica e que outros adjetivos possam encontrar, até mais fortes do que estes".11

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Como será visto adiante, felizmente, nossos Tribunais também não se quedaram inertes à obsolescência do Decreto-lei n. 7.661/1945 diante da mencionada evolução socioeconômica, o que propiciou um notável avanço da jurisprudência brasileira e fomentou salutares debates sobre o assunto, que contribuíram para o surgimento daLREF.12

A esse respeito, ainda na vigência da norma revogada, Manoel Justino Bezerra Filho informava que, mesmo antes das inovações trazidas pela LREF, como a recuperação judicial, esta já vinha sendo aplicada pelo Poder Judiciário, que "tem 60 anos de experiência e criatividade ante a lei em vigor e, portanto, mais que aplicar a lei, aplica-a de forma social e produtiva, mesmo sem específica disposição de direito positivo. Aliás, já há inúmeros casos de 'recuperação', tentados ou em efetivo andamento, ocorrendo ou ocorridos no Judiciário (falência de Casa Centro, na 39a Cível Central de São Paulo; falência de Casa Moysés, na 21a Vara Cível Central de São Paulo; falência de Pérsico Pisamiglio, na 22a Vara Cível Central de São Paulo; concordata de Villanova Engenharia, na 27a Vara Cível Central de São Paulo; Arapuã, na 6a Vara Cível Central de São Paulo; Caio Carro-cerias, na 3a Vara Cível de Botucatu). São casos nos quais a criatividade das partes e de seus advogados recebeu também criativo agasalho jurisdicional, de tal maneira que as empresas, mesmo após a falência, continuam se mantendo em funcionamento, com a tentativa de preservação da produção, dos empregos e com a consequente satisfação dos credores".13

Nada obstante esse esforço jurispru-dencial, como salienta Amador Paes de Almeida, o Decreto-lei n. 7.661/1945 "mos-trava-se extremamente tímido nas opções negociais destinadas à efetiva recuperação das empresas".14

Como resultado de toda essa mobilização doutrinária e jurisprudencial tendente a perseguir soluções e alternativas à crise econômico-financeira do devedor, cujas críticas repercutiam no empresariado brasileiro, veio à lume a LREF, revogando o Decreto-lei n. 7.661/1945 e reformulando o sistema concursal pátrio, mediante a adoção da teoria da preservação da empresa, a estipulação da sua função social como princípio a ser observado e o reconhecimento da sua capacidade de estimular a atividade econômica, tendo estabelecido, para tanto, regras processuais e procedimentais próprias, inclusive com a aplicação subsidiária das normas entabuladas no Código de Processo Civil.15

Feito esse breve resgate histórico do surgimento da LREF, cabe, agora, passar à análise dos fundamentos constitucionais e legais que sustentam o princípio da função social da empresa, previsto...

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