Declarações cambiais em títulos de crédito eletrônico

AutorAlexandre Cateb
Páginas138-149

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1. Introdução

Assunto corrente nos últimos anos, em decorrência do avanço da internet nos meios profissionais e pessoais, além das inovações trazidas pelo Código Civil de 2002, os títulos de crédito eletrônico incitaram a curiosidade e criatividade dos estudiosos do Direito Comercial. Lamentavelmente, porém, complica-se um tema simples devido à ignorância de muitos quanto aos aspectos tecnológicos que envolvem as nuances dos documentos eletrônicos, especialmente no que diz respeito à transposição para o meio digital da manifestação da vontade, outrora simplesmente consignada mediante assinatura de próprio punho da parte envolvida na relação jurídica.

Urge revigorar os títulos de crédito, emprestando-lhes a importância que outrora tiveram no mercado. Hodiernamente, tem-se notado que falta aos títulos de crédito mais utilizados, cada vez mais, a credibilidade que se lhes deve emprestar para que possam ser usados como mecanismo de circulação e transferência de riquezas e, o mais importante, segurança jurídica para as partes envolvidas nessa relação jurídica.

Fato é que, a despeito da vontade que se tem em emprestar para tão importante mecanismo de circulação de crédito o simplíssimo ferramental que lhe permita a circulação por meio digital, até o momento os títulos de crédito eletrônicos não atendem às necessidades propostas pela doutrina, em razão de limitação técnica de informática, e não por dificuldade quanto à aplicação ou adaptação dos institutos jurídicos relacionados aos títulos de crédito.

Necessário, por isso, perceber-se as limitações tecnológicas para permitir o desenvolvimento e utilização de títulos de crédito eletrônicos, razão pela qual apresentamos algumas considerações e contribuições que, esperamos, possam elucidar e esclarecer a essência desses instrumentos de circulação de riquezas.

2. Razão de existência dos títulos de crédito

Como sói acontecer, ao se estudar um determinado instituto jurídico, é imprescindível que se busque sua utilidade prática. Não fosse assim, seria verdadeira perda de tempo debruçar-se sobre um determinado instituto sem que ele tenha utilidade para a sociedade. Deve-se lembrar sempre

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que o Direito, e seus institutos jurídicos, prestam-se a ofertar às pessoas mecanismos úteis para a vida de cada um. O estudo de meios e mecanismos jurídicos que não aproveitam à sociedade configura desperdício intelectual, senão uma simples aventura de ficção.

Assim, não se pode descurar da função principal e básica dos títulos de crédito. Nasceram como meio de instrumentalizar riqueza e permitir sua circulação segura. Noticiam os doutrinadores que a origem dos títulos remonta à necessidade de se encontrar um mecanismo para substituição dos hábitos de troca e escambo. Surgiram os primeiros padrões monetários, criaram--se as primeiras moedas. Como explica Amador Paes de Almeida: "O dinheiro é o instrumento de troca por excelência. Na expressão de Carvalho de Mendonça, é a mercadoria por todos voluntariamente aceita para desempenhar as funções intermediárias nas aquisições de outras mercadorias e na obtenção de serviços indispensáveis, satisfazendo as necessidades humanas no convívio social; é, ainda, o meio normal de pagamento".1

Contudo, a utilização de dinheiro para efetuar pagamentos se mostrou, com o tempo, pouco prática e insegura. Ladrões e pessoas desonestas poderiam se valer da possível insegurança que portadores teriam em carregar consigo grandes fortunas. Assim, a tecnologia comercial desenvolveu um mecanismo que foi posteriormente regulado por leis ao redor do mundo. Surgiram os títulos de crédito, instrumentos hábeis a instrumentalizar recursos e permitir sua circulação sem o risco que o dinheiro, título ao portador por excelência, oferecia para os detentores do capital.

Tullio Ascarelli ensina que os títulos de crédito tiveram fundamental importância para a formação de diversos conceitos da economia moderna: "A vida econômica moderna seria incompreensível sem a den-sa rede de títulos de crédito; às invenções técnicas teriam faltado meios jurídicos para a sua adequada realização social; as relações comerciais tomariam necessàriamente outro aspecto. Graças aos títulos de crédito pôde o mundo moderno mobilizar as próprias riquezas; graças a eles o direito consegue vencer tempo e espaço, transportando, com a maior facilidade, representados nestes títulos, bem distantes e materializando, no presente, as possíveis riquezas futuras".2

Na célebre definição de Cesare Vi-vante, quase adotada de forma literal pelo Código Civil de 2002,3 o título de crédito "é o documento necessário ao exercício do direito, literal e autônomo, nele mencionado". Criava-se assim, e posteriormente foi regulamentado ao redor do mundo, um mecanismo que tem as virtudes de abstrair--se do negócio jurídico que lhe deu origem, bastando por si próprio na eventualidade de ser cobrado judicial ou extrajudicial-mente, confere segurança ao seu portador, ao obrigado ao pagamento e a terceiros que por acaso venham a ter contato com aquele instrumento de crédito.

Contudo, crédito é uma característica fundamental para a existência, validade e utilização dos títulos de crédito. Credere é a palavra latina que deu origem à expressão crédito. Significa confiar, acreditar que o devedor irá cumprir, perante o credor, a obrigação constante do título, no local, tempo e forma aprazados.

Se para a empresa a busca pelo lucro é uma das principais razões de sua existência, também para o investidor o retorno do investimento justifica e incentiva a criação e aplicação da lei de forma mais eficiente, economicamente considerada. Trata-se da utilização da chamada teoria dos custos de

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transação, conceito fundamental da chamada Teoria Neo-Institucionalista, na idealização e aplicação da lei. Custos de transação são os custos de realização e cumprimento de transações ou trocas de titularida-de.4 Ou seja, na realização de qualquer negócio jurídico, os agentes considerarão os custos embutidos naquele negócio para parametrizar suas ações em busca de um melhor e mais eficiente resultado econômico. Essa é, basicamente, a aplicação do chamado Teorema de Coase, expressão cunhada por George J. Stigler em sua obra The Theo-ry ofPrice, a partir da análise do célebre paper de Ronald Coase,5 "The problem of social cost", inicialmente publicado em The Journal ofLaw and Economics,6 em 1960.

Permitindo que credores vinculem a um único instrumento razoáveis quantias de dinheiro, facilmente deslocadas de um canto a outro, os títulos de crédito dinamizaram a relações comerciais e de mercado de forma absolutamente eficiente. Tragicamente, contudo, as diversas instituições oficiais impuseram restrições ao uso dos títulos de crédito, trazendo para os usuários a desconfiança de sua real utilidade para o dia-a-dia dos negócios.

Voltando aos estudos de Ronald Coase,7 encontramos suas pertinentes observações sobre o papel dos custos de transação nas ações dentro das empresas e em relação ao mercado. Três aspectos compõem os chamados custos de transação: a informação, a negociação e a execução contratual.

A obtenção de informações relevantes para minimizar a assimetria entre as partes constitui custo diretamente proporcional à posição e informação de cada parte na relação.

Também constitui custo para as partes a negociação travada a fim de obter os melhores resultados para cada um, ou pelo menos a situação mais equilibrada entre os agentes.

Por fim, influem nos custos as tarefas necessárias à execução dos negócios jurídicos, a fim de obter maior equilíbrio ou melhores resultados para as partes envolvidas na transação.

Para Oliver Williamson,8 as instituições econômicas do capitalismo têm como principal objetivo e efeito de minimizar os custos de transação. Mas adverte o autor que "principal efeito" não se confunde com "único efeito", pois instituições complexas servem a vários propósitos.9

No caso brasileiro, o descrédito em relação aos títulos de crédito decorreu primeiramente de decisões judiciais absurdas, que negaram aos títulos de crédito autônomos (p. ex., notas promissórias, letras de câmbio, etc.) sua real validade. Passou-se em muitos casos a aceitar o argumento fácil e vazio da inexistência de negócio jurídico que desse origem aos títulos, exonerando-se desta forma os obrigados ao pagamento sem qualquer justificativa legal que não o apelo indevido e incorreto a princípios como a função social da propriedade, a dignidade humana, o devido processo legal... Descuraram-se assim de características básicas e elementares dos títulos de crédito: documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele contido. Na prática, transformaram a execução em processo de conhecimento...

Sabe-se que a ineficiência na prestação jurisdicional faz com que o sistema

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judicial brasileiro seja considerado um dos piores do mundo. Estudo do Banco Mundial indica que o país, considerando as dificuldades para se iniciar um negócio, contratar e dispensar empregados, garantir o direito de propriedade, proteger investidores e tomar empréstimos, manter a regularidade dos tributos e obrigações fiscais, negociar através das fronteiras, exigir o cumprimento judicial de contratos e encerrar as atividades empresariais, se situa em alarmante 121° lugar, em ranking de 175 países.10

O problema é reconhecido e admitido pelo governo brasileiro. Trabalho intitulado Judiciário e Economia, produzido pela Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça menciona que "se o cidadão lesado desejar recorrer à Justiça brasileira para ver garantido seus direitos, perderia no...

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