Ernane Salles e o Constitucionalismo do Atraso.

AutorGomes, David F.L.
CargoResena de libro

Ernane Salles e o Constitucionalismo do Atraso Constitucionalismo do atraso. Belo Horizonte: D'Placido, 2017.

  1. Um titulo enganoso

    O titulo, tanto desta resenha quanto do livro que ela toma por objeto, engana. Nao se trata de repetir uma das mais difusas teses compartilhadas pela teoria constitucional e pela teoria social brasileira: a tese do atraso, de um pais eternamente atrasado em face de suas potencialidades, de um atraso que se materializa, dentre outras coisas, em uma Constituicao que, como norma, nunca se efetiva plenamente na realidade. Pelo contrario, trata-se exatamente de resgatar de um ponto de vista critico essa tese. E, como critica nao se refere apenas a uma adjetivacao negativa de algo, mas requer um trabalho arduo e duplo de analisar profundamente--separar o todo em suas partes para depois remonta-lo, compreendendo os elementos que o constituem e as conexoes que entre eles se estabelecem--e de julgar, resgatar essa tese de um ponto de vista critico significa ir a busca da tessitura complexa da qual ela emerge, bem como das consequencias que se vem enredar nessa mesma teia.

    Para tanto, um excelente campo tematico e o conjunto de acontecimentos que passariam para o acervo historico e teorico nacional com o nome de "Jornadas de Junho". Nao que a tese do atraso seja recente, surgida do caldeirao de 2013. Mas, como uma tese de fundo que pretende para si a forca de uma interpretacao totalizante de uma historia de longa duracao, ela se atualiza reiteradamente a cada momento em que, como em junho de 2013, a pergunta por aquilo que somos, por aquilo que nos constitui como pais e como sociedade, volta a tona.

  2. O corpo da obra

    O roteiro do livro comeca com uma primeira aproximacao em relacao as Jornadas de Junho, a qual se dedica o primeiro capitulo. O objetivo dessa primeira aproximacao e mostrar como, no transcurso das manifestacoes, seu perfil vai sendo alterado. Tendo como estopim os protestos contra o aumento nas tarifas de onibus e a desastrosa resposta governamental a esses protestos, o que caracterizaria as manifestacoes de junho em seu inicio seria uma imensa pluralidade interna: "Tratava-se, portanto, de um concerto dissonante, multiplo, com elementos progressistas e de liberdade, mas tambem de conservadorismo e brutalidade, alias, presente na propria sociedade brasileira" (COSTA JUNIOR, 2017, p. 44-45).

    Com o passar dos dias e o suceder-se dos atos, porem, seria possivel mapear uma tentativa, empreendida pela grande midia, de direcionar o movimento e centralizar suas pautas:

    Nessa analise especifica, defendemos a tese, segundo a qual a cobertura da grande midia--tradicionalmente conservadora e vinculada a determinados grupos de interesses e de poder, como ja procuramos demonstrar--construiu narrativas, buscando direcionar a opiniao publica na construcao de determinadas representacoes sociais--muitas delas ja inscritas no proprio imaginario da sociedade brasileira" (COSTA JUNIOR, 2017, p. 58).

    Essa tentativa viria a mostrar-se bem sucedida e, numa interacao reciprocamente retroalimentada entre o discurso produzido pela grande midia e o "discurso aparentemente espontaneo das novas midias sociais" (COSTA JUNIOR, 2017, p. 66), aos poucos um grande tema ia sendo consolidado como o tema das manifestacoes: a critica a corrupcao. E, intrinsecamente ligado a ele, a imagem de um gigante que desperta de seu sono em berco esplendido.

    O segundo capitulo vira debrucar-se exatamente sobre a figura do gigante, sobre a "configuracao da narrativa do Gigante Adormecido como integrante de uma mitologia nacional" (COSTA JUNIOR, 2017, p. 74). Um primeiro passo nessa direcao consiste em definir, a partir de Paul Ricoeur, a identidade, e especialmente a identidade nacional, como uma identidade narrativa:

    no que concerne as identidades coletivas, o povo constitui-se, ao mesmo tempo, como escritor e leitor da sua propria vivencia compartilhada.

    Identidade e narrativa estao, pois, ligadas pela capacidade que um grupo tem de trazer a sua linguagem a unidade, a totalidade que liga experiencias individuais e coletivas tao dispersas, diversas e heterogeneas a fim de tecer uma intriga sobre si de maneira coerente (COSTA JUNIOR, 2017, p. 80).

    Na identidade brasileira narrativamente construida, a figura do gigante emergiria ligada a outras duas imagens. De um lado, um "ufanismo edenico" diante de uma natureza exuberante; de outro, a fragilidade das instituicoes: "A imagem do Gigante parece entao refletir uma especie de dualidade no que concerne a relacao entre cultura e natureza, representado pelo paradoxo entre abundancia e atraso, prodigalidade da terra e deficiencias das instituicoes" (COSTA JUNIOR, 2017, p. 102). E nos meandros dessa dualidade que se constitui a figura especifica do gigante que acorda: contra o fracasso institucional, o gigante "pela propria natureza" que teria estado ate entao adormecido precisaria erguer-se, e ter-se-ia erguido justamente em junho de 2013.

    Continuando a investigacao acerca da mitologia do gigante adormecido, Ernane Salles diz: "Encontram-se, pois, tres...

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