Elementos para uma epistemologia jurídica crítica a partir do pensamento de Tércio Sampaio Ferraz Júnior

AutorLuiz Magno Pinto Bastos Júnior
CargoMestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, professor de Direito Processual Constitucional e Direito Constitucional na Universidade do Vale do Itajaí. E-mail: lmagno@sj.univali.br
Páginas43-66

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1. Introdução

Nas primeiras páginas de A Ciência do Direito (1977), Ferraz Jr apresenta as dificuldades inerentes a qualquer intento de investigar os fundamentos epistemológicos da ciência do direito. O autor põe em questão, inicialmente, a possibilidade de existir uma ciência jurídica autônoma e diferenciada. Para discutir esta questão, ele suscita as seguintes reflexões: qual a diferenciação do método das ciências naturais em relação ao da das ciências humanas? Reconhecida a sua cientificidade, o seu local apropriado seria ao lado das ciências humanas ou ocupando um lugar apartado na teoria geral do conhecimento? Admitido o seu caráter tecnológico (como propugna o autor), estar-se-ia negando, necessariamente, o seu estatuto de cientificidade?

Sem pretender esgotar ou resolver estas questões, o que se objetiva aqui é, tão-somente, investigar os traços caracterizadores da epistemologia jurídica de Ferraz Jr., perquirindo os limites de sua obra e sinalizando possibilidades dela advindas na formulação de uma leitura crítica da dogmática jurídica.

Ferraz Jr tem grande projeção na academia brasileira, constituindose, ao lado de Reale, em um dos grandes ícones da Universidade de São Paulo. A ele é atribuída a introdução do pensamento tópicojurídico no Brasil (obra de Viehweg), além de ter, de forma pioneira, juntamente com Warat, embrenhado-se nas investigações filosóficas levadas a cabo pela teoria da linguagem, com especial ênfase às investigações acerca da pragmática jurídica.

Com o propósito antes mencionado, preocupamo-nos, inicialmente, em apresentar alguns apontamentos em torno das matrizes epistemológicas que encontram ressonância na obra de Ferraz Jr., fornecendo elementos pontuais em torno do pensamento sistêmico-funcional, da filosofia pragmática e da tópica/retórica jurídica que, ao longo de seus diferentes textos, são reunidos de forma complementar na construção de um modelo teórico que compreende o direito a partir de um complexo sistema comunicacional que visa controlar e regular comportamentos, e, por conseguinte, que concebe uma ciência do direito de cunhoPage 44 notadamente tecnológico, centrada no problema da decidibilidade dos conflitos.

Feita esta ponte entre os elementos da teoria de base e a estrutura hipotética desenvolvida para apreender o fenômeno jurídico, aquele jurista tripartiu o modelo teórico por si mesmo proposto em três (sub)modelos dotados de funções específicas que, concorrentemente, podem conferir coerência e sistematicidade à dogmática jurídica como um todo. Tratam-se dos modelos analítico, hermenêutico e empírico que fornecem instrumental teórico para apreender, inclusive, os limites a que está condicionada a ciência jurídica. Buscando apontar caminhos aptos a darem resposta às novas exigências impostas pela sociedade (em crescente grau de complexidade e de mutação) apontamos, por fim, alguns dos limites e possibilidades do modelo de Ferraz Jr.

2. Pressupostos epistemológicos do pensamento de

Antes de expor o modelo de ciência preconizado por Tércio Sampaio Ferraz Jr, preocupamo-nos em apresentar, sucinta e brevemente, algumas considerações em torno das teorias de base que lhe dão sustentação, como forma de melhor compreender a sua proposta.

A partir de uma abordagem sistêmico-funcional, fundada nas teses sociológicas desenvolvidas por Luhmann (Cf. 1990), o juspublicista paulista concebe o sistema jurídico como um subsistema auto- referencial1 no interior do sistema social global.

Um sistema, portanto, só pode ser compreendido a partir da correlação do seu repertório (conjunto de elementos e seus atributos) como sua estrutura (regras de estruturação das relações entre os elementos) (Cf. Ferraz Jr., 1997, p.140). Esta diferenciação enseja a construção de dois enfoques distintos e complementares entre si: uma teoria da diferenciação em que se especifica a função (repercussão/reação) de cada elemento em relação ao entorno; e a teoria da complexidade através da qual se estuda o sistema de regulação interno que conecta os elementos através das regras de interação.

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A principal função desempenhada pelo sistema jurídico consiste em reduzir a possibilidade de desilusão das expectativas comportamentais (conferir previsibilidade e permanência às relações sociais) - redução das contingências, nos termos da teoria sistêmica - através de um processo congruente de generalização de padrões de comportamento.2

Assim, o sistema jurídico se estrutura visando à imunização (neutralização) dos conflitos de interesses (expectativas resistidas) entre os membros da sociedade, conflitos estes surgidos em outros subsistemas e captados no seu interior através do que Luhmann denomina de abertura cognitiva, que garante tanto a sua autonomia como a sua adaptabilidade (eficácia) ante as transformações sociais.

A transposição da teoria sistêmica aos sistemas sociais, só é possível através do reconhecimento de que o comportamento humano é dotado de um caráter comunicacional (as relações sociais estabelecem-se através de processos de comunicação entre diferentes atores sociais) e que se estabelece a partir da existência de um padrão organizacional comum e contingente.

Admitindo que o comportamento humano pode ser identificado a um "estar em situação" (comunicação), a troca de mensagens daí advinda constitui-se como elemento básico da sociedade. Sendo assim, a linguagem (como condição de possibilidade de emissão e decodificação de mensagens entre sujeitos comunicantes) ganha relevância enquanto matriz epistemológica, razão pela qual a reflexão filosófica, através da Filosofia Analítica e da Filosofia Pragmática, objetiva ora construir uma ciência da linguagem como padrão de racionalidade para o conhecimento, ora privilegiar o aspecto do contexto discursivo no qual se desenvolve a linguagem.

A linguagem, tradicionalmente, é estruturada em três níveis: o nível sintático cujo objeto é o estudo da estrutura formal da linguagem, através de uma análise lógico-lingüística; o nível semântico que privilegia o sentido das proposições, procurando identificar os objetos para os quais os signos apontam, relacionando o discurso à realidade circundante; e o nível pragmático onde se busca investigar o uso dos fatos lingüísticos enquanto jogos estratégicos (aspecto lúdico), no sentido de investigar as dimensões da ação e reação (interação), da pergunta e resposta (aspecto comportamental dos atores, mediados por mensagens), da dominação e esquiva (controle e regulação), da luta entre diferentes agentes sociais (fenômeno do poder) (Cf. Ferraz Jr., 1997, p.1-13).

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A situação comunicativa tem como ponto de partida a interação entre sujeitos comunicantes (orador e ouvinte) mediados por mensagens, sem os quais não há que se falar em discurso. Por sua vez, as mensagens importam a compreensão de seu duplo aspecto: o aspecto-relato (a informação transmitida no ato de falar) e o aspecto-cometimento (que transmite a forma com que esta informação deve ser entendida); razão pela qual Ferraz Jr (1997, p.31) afirma que "quem fala informa e determina a relação entre si próprio e o seu ouvinte".

Esta relação, enquanto orientada por (e para) comportamentos é marcada por atos de pergunta e resposta3 que introduzem o elemento de reflexividade no interior do sistema, o qual, por seu turno, é controlado através das regras do discurso racional que podem ser resumidas nos seguintes termos:

  1. aquele que fala (orador) tem de provar a justificação/fundamentação do discurso;

  2. todo ato de falar pode ser colocado em dúvida, possibilitando diálogos parciais entre o orador e o ouvinte;

  3. a ação lingüística primária do orador (premissas aporéticas) não pode ser atacada pelo ouvinte, o que inviabilizaria a situação comunicativa;

  4. o orador não pode modificar sua ação lingüística (Cf. Ferraz Jr, 1997, p.16-26).

O discurso, nestas condições, caracteriza-se por uma estrutura dialógica que admite, de forma controlada, o questionamento de suas próprias premissas.

Por outro lado, se o orador estabelece como premissa uma verdade irrefutável, encontra-se diante de outra modalidade discursiva de caráter monológico, que resulta em uma axiomatização uma vez que seus fundamentos não podem ser atacados.

Os discursos dialógicos, em razão de sua reflexividade (possibilidade de questionamento sobre o questionamento), caracterizam-se como um jogo infinito de estratégias4 que se organizam a partir de topoi.5 De acordo com a natureza desta estruturação, podemos concebê-los ora como modelo homológico ora como modelo heterológico.

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O modelo homológico é caracterizado por uma estratégia de convencimento baseado em afirmações de enunciados verdadeiros (demonstráveis e refutáveis), enquanto o heterológico é marcado por uma estratégia de persuasão em face da ocorrência de conflitos entre expectativas não mutuamente excluídas que pedem por uma decisão.

Às decisões - que vão nortear toda a concepção de ciência dogmática do direito em Ferraz Jr - atribui-se uma dupla função: além de pretenderem estabelecer consenso (percebido como uma possibilidade)6, visam à "absorção de insegurança", uma vez que "não eliminam alternativas, mas tornam alternativas indecidíveis em decidíveis" (Ferraz Jr, 1997, p.29).

As normas já não são ontologicamente consideradas (elementos em si), mas dimensionadas a partir de sua natureza interacional, posto que na definição do autor representam "discursos heterológicos, decisórios, estruturalmente ambíguos7 , que instauram uma meta-complementariedade8 entre orador e ouvinte e que, tendo por quaestio um conflito decisório, o solucionam na medida em que lhe põem um fim". Desta forma, o sistema...

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