Diálogo e compreensão no direito: as possibilidades de uma epistemologia hetero-reflexiva no paradigma hermenêutico-filosófico

AutorWálber Araujo Carneiro
CargoDoutorando pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Páginas1-18

Doutorando pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS em "sanduíche" com a Universidade de Coimbra - Portugal. Mestre e Especialista em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia - UFBA. Professor da Universidade Salvador - UNIFACS e Advogado. walber.carneiro@unifacs.br

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Introdução

Muitos são os caminhos que podem ser tomados para o estudo da difícil relação entre Filosofia e Direito. Poderíamos nos perguntar sobre o fundamento do sistema jurídico; sobre a relação entre direito e justiça; entre direito e moral; sobre a função do sistema e sua relação com a segurança; sobre as implicações entre direito e poder; sobre a relação da validade com a legitimidade e assim por diante. Entretanto, levando-se em conta a dimensão epistemológica, podemos nos perguntar acerca do modelo metodológico sobre o qual a Ciência do Direito. Neste sentido, temos não só que analisar o seu "produto final", como também avaliar qual o papel da dogmática jurídica, seus limites e suas possibilidades.

Essa avaliação nos remete à relação entre Ciência e Filosofia e ao modo como esses dois saberes interagem. Indo em busca de um modelo paradigmático que, por um lado, possibilite a interpretação da Ciência e, por outro, um espaço para o seu desenvolvimento, encontramos na encruzilhada a pergunta sobre a possibilidade de uma epistemologia jurídica. Reconstruindo os passos de uma fenomenologia hermenêutica, busca-se aqui a verificação de um "momento epistemológico" (STRECK, 2007, p. 350) no Direito em um paradigma que, por não pensar o Page 2 "método" e por abandonar um "objeto", nega a estrutura clássica da epistemologia. Aqui, vai-se em busca de um "diálogo perdido". Page 3

1. A ciência do direito como dogmática jurídica

Tomemos como ponto de partida a pergunta: "o que é a dogmática?". Sempre que nos referimos à dogmática jurídica estamos nos referindo a "enunciados" que trazem consigo uma "pretensão normativa", que transforma esse enunciado em um "ponto de partida inquestionável". Mas, de onde surge esse ponto de partida inquestionável? Se levarmos em conta o positivismo primitivo, os "pontos de partida" fornecidos pelo legislador seriam suficientes. Caberia à Ciência do Direito, apenas, o acoplamento entre o texto e o fato ou, no máximo, uma reconstrução lógica de algumas lacunas do sistema.

Contudo, a complexidade da sociedade provocou demandas que ultrapassavam os mitos sobre os quais a concepção mecanicista se assentava. Era necessário "dizer algo sobre o direito". Neste momento, com uma visão positivista mais avançada, o ponto de partida inquestionável deixa de ser apenas a lei, assumindo também a forma de conceitos. Surgem as "estruturas dogmáticas" e, com elas, o papel da doutrina e do "Cientista" do direito se torna mais relevantes.

É missão agora da ciência reconhecer as proposições jurídicas no seu nexo sistemático, como sendo entre si condicionantes derivantes, a fim de poder seguir-se a sua genealogia desde cada uma delas até o ao princípio comum e, do mesmo modo, descer do princípio até ao mais baixo dos escalões. Neste empreendimento, vêm a trazer-se à consciência e à luz do dia proposições jurídicas que, ocultas no espírito do Direito nacional, não se tinham ainda exprimido, nem na imediata convicção e na actuação dos elementos do povo, nem nos ditames do legislador, ou seja, que patentemente só se vêm a revelar enquanto produto de uma dedução da ciência. E eis como a ciência vem a entrar como terceira fonte de Direito ao lado das outras duas, sendo o Direito, que mediante ela surge, o Direito da ciência, ou, porque é trazido à luz pela actividade dos juristas, o Direito dos juristas. (PUCHTA apud LARENZ, 1997, p. 24)

Muito embora muita coisa tenha sido dito a partir de então, o pensamento conceitual de Puchta ainda se mostra presente no "senso-comum-teórico" dos juristas. A dogmática jurídica a partir dele, por uma total impossibilidade, deixa de ser sinônimo de lei e passa a ser sinônimo de conceitos: linguagem e metalinguagem normativa que se entrelaçam a partir de um modelo lógico, que foi incorporado do jusnaturalismo (FERRAZ JR, 1980, p. 23). Mas, como uma ciência positivista poderia refletir sobre as condições de validade desse modelo? Essa reflexão depende de uma observação filosófica cruzada. Depende de "uma filosofia do não" Page 4 (BACHELARD, 1978) que impeça o desenvolvimento de uma ciência inadequada e que proporcione "rupturas" paradigmáticas.

Mas essa filosofia não poderá se colocar como "o lugar da verdade" sobre o direito. Não é possível ignorar a produção doutrinária, uma tradição sobre determinado instituto jurídico, nem muito menos ignorar alguns dados empíricos - pouco utilizados no direito - que limitam possibilidades, não só da epistemologia, como também das próprias assertivas jurídicodogmáticas. É preciso que a dogmática dialogue com a filosofia; é preciso que a dogmática seja vista como aquilo que ela realmente é (pode ser).

Neste sentido, não há como fugir de um paradigma, ou seja, não é possível refletir sobre a Ciência sem tomar por base um paradigma filosófico. A crítica dirigida por Habermas (2003, p. 30) à filosofia paradigmática não pode ser dirigida a "adoção de um paradigma", mas à adoção de um "paradigma autoritário", que tem a pretensão de julgar e de dizer o lugar da Ciência. O que é a filosofia de Habermas senão uma filosofia paradigmática? Se tomarmos a noção de Stein (2001a, p. 43) sobre as filosofias paradigmáticas, perceberemos em Habermas todos esses elementos, quais sejam, uma teoria do conhecimento, uma teoria da verdade e uma teoria sobre a racionalidade. Habermas institui um "paradigma" que, por sua vez, "convive" com outros paradigmas. A sua crítica não pode ser dirigida ao paradigma hermenêutico, mas sim ao kantiano.

2. Crítica à dogmática a partir da fenomenologia hermenêutica

Toda a tradição culturalista no direito se volta para a tentativa de reconstruir a Ciência do Direito, libertando-a da prisão positivista, sendo inegável a influência da tradição "fenomenológica" nessa empreitada. Cóssio e toda tradição egológica brasileira, a exemplo de Machado Neto e Marília Muricy, chamam a atenção para o fato de que o direito não é "norma" - nem, tampouco, a dogmática no sentido aqui trabalhado - mas sim conduta humana em sua interferência intersubjetiva.

La verdad es que el conocimiento jurídico no es un conocimiento histórico, ni físico, ni matemático, sino un conocimiento normativo. Pero esto no quiere decir, para la teoria egológica, que el objeto del conocimiento jurídico sean normas, son o que mediante la Page 5 conceptuación normativa se conoce el objeto de la Ciencia jurídica, que es la conducta humana en su interferencia intersubjetiva. (COSSIO, 1964, p. 213)

Para o Egologismo, o método adequado ao conhecimento do direito era o empíricodialético (CÓSSIO, 1964, p. 79), que proporcionaria uma circularidade entre a conduta e o sentido da conduta, demonstrando as aproximações entre ela, a fenomenologia hermenêutica de Heidegger (2005) e a hermenêutica filosófica de Gadamer1 (2003b).

A consciência histórica de Reale insere-se nas tentativas de aliar a consciência intencional que capta o fenômeno à necessária historicidade do direito, construída a partir da vivência do homem na sociedade.

Estudo de ordem lógica é legítimo e necessário, mas deve ser complementado com a implicação da realidade social ordenada, sem a qual a norma não tem valor de norma jurídica. Norma e conduta são, por conseguinte, termos que se exigem e se implicam, mas se reduzem um ao outro: - subsistem em implicação recíproca, segundo a que temos denominado "dialética de complementariedade", que caracteriza e governa todo o processo cultural. (REALE, 1994, p. 385)

No entanto, muito embora a tradição culturalista e o neoconstitucionalismo tenham contribuído para a revisão do estatuto epistemológico da Ciência do Direito, a prática se revela como uma "mixagem paradigmática" (STRECK, 2007) que, ao final, se transforma em "decisionismos". Quando os princípios do neoconstitucionalismo se mostram como uma alternativa de "abertura" à eticidade e, consequentemente, de "fechamento" à discricionariedade política no direito, a "mixagem" proporciona a "abertura discricionária do direito". A busca pelo chamado "conteúdo material dos princípios" nada mais é que a influência direta da jurisprudência conceitual, ou seja, a tentativa de dizer algo sobre aquilo que, tendo a pretensão de nos dizer muito, diz pouco. Mas a questão é que não podemos esperar que os princípios "nos digam" algo ou, pelo menos, que eles nos digam aquilo que "queremos" ouvir (a descrição concreta de uma conduta). Se for isso aquilo que queremos escutar, os princípios somente servirão como "porta de entrada" para a discricionariedade no direito. Temos que atentar para o fato de que "princípios" são "existenciais", ou seja, eles não precisam dizer aquilo que já sabemos. Page 6

Assim, seja a tradição culturalista mais antiga dos anos 40 a 60; seja a sua vertente contemporânea neoconstitucionalista, o direito não pode ser visto como norma, nem como um sistema lógico-conceitual. Neste ponto, a fenomenologia hermenêutica de Heidegger será bastante esclarecedora ao responder à seguinte pergunta: como conhecer o direito?

Foge aos limites deste trabalho a descrição da fenomenologia hermenêutica de Heidegger, contudo, uma síntese pode ser feita. Em primeiro lugar, Heidegger foge da chamada "intencionalidade da consciência" presente na fenomenologia de Husserl, sustentando que nós não vamos ao fenômeno, e sim os fenômenos é que chegam até nós. Esse fenômeno surge na nossa "clareira" e provoca um desvelamento, ou seja, o ser. O...

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