Entraves a eficácia da lei de recuperação de empresas em crise. Como superá-los?

AutorMaria Celeste Morais Guimarães
Páginas155-164

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Este artigo tem por objetivo analisar a eficácia da Lei n. 11.101/2005, que entrou em vigor em 9 de junho de 2006, em face dos processos em andamento, em especial o da Varig, cujo desfecho exitoso demonstrou, afinal, que a nova lei mostrou seus resultados.

Embora se reconheça que a nova lei tenha entraves à sua melhor aplicação, o princípio da função social da empresa deve ser tutelado pelo Estado, que é o primeiro interessado na manutenção dos empregos dos trabalhadores, da atividade produtiva e do crescimento económico do país.

O que se impõe é a mudança na exegese para aplicação da lei, privilegiando-se a visão finalística em detrimento do aspecto formal. O processo de recuperação da Varig, com o recente anúncio da sua aquisição pela Gol Linhas Aéreas, demonstra que esta nova hermenêutica pretendida não é um sonho, mas uma realidade que se faz presente a cada dia.

I - Introdução

Inicio este artigo com a notícia da aquisição do controle acionário da VRG Linhas Aéreas S/A - companhia área que opera a marca "Varig", em recuperação judicial, pela Gol Linhas Aéreas, em uma bem-sucedida operação de salvamento de uma empresa em crise, na economia brasileira. Não se trata de uma empresa qualquer, mas da mais tradicional companhia do setor aéreo nacional, com reconhecida excelência na prestação de seus serviços, inclusive internacionalmente, constituindo-se uma referência no seu segmento, ao ponto de a mídia referir-se a ela como um verdadeiro "património nacional".

Tal operação provocou-me e, também, acredito, em todos aqueles que acreditavam na importância da edição da nova lei de recuperação, uma sensação de conforto e de regozijo em verificar que a Lei n. 11.101/ 2005, afinal, mostrou seus resultados.

"A eficácia de uma lei é questão de ordem sociológica", já nos ensinava o Prof. Osmar Brina Corrêa-Lima,1 ao comentar a

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edição da Lei n. 6.404/1976 - Lei da S/A. Infelizmente, o grau de eficácia das leis no Brasil mostra-se abaixo do desejável. "Aqui, (diz o Professor) as leis são como vacinas: umas pegam, outras não". Não foi diferente com a edição da Lei n. 11.101 /2005, cercada de muita desconfiança e descrença acerca da eficácia dos seus resultados.

A pergunta que se fazia era: pode uma lei recuperar uma empresa? É evidente que não. Uma norma não tem, por si só,.este condão, este fetiche. Contudo, para os defensores do então Projeto de Lei n. 4.376/ 1993, dentre os quais sempre me incluí, estava claro que a inadequação legislativa, traduzida pelo Decreto-lei n. 7.661/1945, só agravava a situação de crise nas empresas, na medida em que não oferecia soluções técnicas necessárias para debelar os graves efeitos que o desaparecimento de uma empresa acarreta à sociedade. E aí está a demonstração cabal desta premissa. A solução da crise econômico-financeira da Varig não seria possível se não estivesse em vigor a Lei n. 11.101/2005. Ao tempo do Decreto-lei revogado, ela já estaria falida.

Por grande período da história, a solução da insolvência das empresas ficou restrita ao círculo privado dos interesses do devedor e de seus credores. A solução da crise económica e financeira das empresas não reclamava uma ingerência do Estado, que, alheio, assistia o desenrolar do conflito. Os postulados do liberalismo reforçavam esta tendência. A eliminação da empresa seria o efeito seletivo das leis naturais da competência. O empresário insolvente tem de ser eliminado do mercado porque a insolvência demonstrou a sua incapacidade. Neste período, portanto, os procedimentos legais relativos à solução da insolvência das empresas eram essencialmente liquidatários e solutórios, vale dizer, para a satisfação dos créditos, se fosse preciso, chegar-se-ia à liquidação da sociedade com o desaparecimento, da unidade produtiva.

No decorrer do século XX, principal: mente à partir do filial da Segunda Guerra Mundial, o interesse do Estado na conservação da empresa adquire indubitável relevo. Dè um lado, porque a especialidade, característica do século passado, deixa espaço a uma potencial generalidade, no sentido de que a conservação é legitimada pela dimensão da empresa - pela sua importância quantitativa e qualitativa - e não simplesmente pelo setor a que pertence. De outro, pela heterogeneidade de meios a que recorre o Poder Público para impedir a eliminação.

Nesta fase, ao interesse público, entendido como o interesse do Estado, acrescentou-se um novo: os dos trabalhadores que entraram na realidade da empresa. O interesse social adquire progressiva importância e obriga a uma revisão do status quo, na medida em que, direta ou indiretamen-te, condiciona a solução da crise económica da empresa.

À oposição entre interesse público e interesse dos credores, de um lado, e entre este e o interesse dos trabalhadores, de outro, agrega-se um dado a que não se tinha por costume atentar, segundo Ángel Rojo Fernández-Rio (apud Guimarães): "É a ruptura da unidade dos próprios credores. No Direito vigente, do princípio da par condido creditorum apenas restou uma pequena sombra. Ao privilégio que desde as origens da quebra se reconhecia aos créditos de natureza pública, foram sendo acrescentados, em confuso tropel, muitos outros, conforme a potência económica de cada uma das categorias de credores. A história mostrou não só a proliferação de privilégios, mas também a luta entre os créditos privilegiados".2

Esta circunstância ocasionou as mais baixas cotas de satisfação na liquidação do património do devedor. Por todas estas razões, os próprios credores começaram a compreender que a liquidação da empresa

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não era o melhor modo de satisfazer as suas expectativas de receber os créditos.

Desta forma, os interesses que gravitavam em torno da empresa: os trabalhadores, fornecedores, prestadores de serviços e a própria comunidade, que são atingidos pela crise da empresa, passaram a ser reconhecidos e tutelados pelo Poder Público, que assumiu, portanto, papel de relevância na solução do conflito, buscando a recuperação da empresa e a manutenção da ativi-dade empresarial.

Tal situação propiciou um nítido deslocamento da matéria, antes de cunho eminentemente privatístico, para o campo pu-blicístico. O Estado passou a tutelar os interesses coletivos, reconhecendo a imprescindível função social que a empresa tem na sociedade contemporânea, tornando possível a introdução no direito concursal do instituto da recuperação de empresas.

II - Breve histórico do instituto

A partir do Chandler AcU de 1938, surge nos Estados Unidos um novo instituto denominado corporate reorganization, cujo objetivo é salvaguardar a empresa, operando na companhia que a explora a reorganização económica e administrativa necessária ao superamento da crise. O instituto, como o próprio nome já indica, só se aplica às sociedades anónimas. Não se trata de procedimento substitutivo da concordata, ao arbítrio do devedor, mas de uma solução aplicável apenas nas hipóteses em que a simples concordata (arrangement proceeding) se revele uma medida insuficiente para conjurar a crise empresarial. Por isso mesmo, em sua petição inicial de corporate reorganization, a companhia deve demonstrar por que a concordata não se aplica ao seu caso.

O inovador procedimento preconiza a tentativa de salvamento da empresa que demonstre ter viabilidade económica, mas que passe por graves dificuldades financeiras, evitando-se, com as medidas de reor-ganização empresarial, que ela seja levada à falência.

Com o New Bankruptcy Code, as normas foram aperfeiçoadas em 1978, como nos dá notícia o Prof. Jorge Lobo,3 com a ampliação dos poderes da Securities and Exchange Commission (SEC), representante do Governo Federal, incumbida de velar pela aplicação de sua política econômico-financeira no setor empresarial. A grande contribuição da corporate reorganization, dentre outras, é a apresentação, pelo devedor, do "plano de reorganização da companhia", que detalha as medidas a serem implementadas para o pagamento dos credores como as alterações estatutárias julgadas necessárias a um melhor desempenho da empresa.

Após esta exitosa experiência nos Estados Unidos, transformação análoga ocorreu na França, com a promulgação da Lei n. 67.563, de 13.7.1967, e com a Ordenação n. 67.820, de 23 de setembro do mesmo ano, que reformularam por completo o Direito Falimentar francês. A instituição do procedimento do réglement judiciaire, voltado para a recuperação da empresa em crise, teve por características superar as distinções entre processos de execução cole-tiva, fundadas em critérios jurídico-formais, de modo a estender o procedimento também às pessoas jurídicas não mercantis, ademais das propriamente mercantis.

A reforma empreendida no direito francês obedeceu a rigorosos princípios. Dentre eles, o mais importante foi o reforço das prerrogativas judiciais, em detrimento dos poderes dos credores, instituindo uma tendência que passou a ser dominante nos países europeus, a partir de então, de restringir-se a chamada "democracia de credores" nos procedimentos concursais.

Grande influência, também, deve ser creditada, no aperfeiçoamento dos procedimentos de recuperação de empresas, à

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experiência da legislação espanhola, hoje modelar na Europa. A Espanha reformou inteiramente o seu direito concursal por meio da "Ley Orgânica 8/2003", de 9 de julho de 2003, que modificou a "Ley Orgânica 6/1985", de 1 de julho de 1985.

A legislação anterior...

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