O ensino do direito comparado e as ferramentas atuais de pesquisa, em particular a internet

AutorLeonardo Brandelli
Páginas27-43

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Ver Nota1

Introdução

Sobremodo feliz pelo honroso convite do Professor Leonardo Bran-delli, para participar da presente coletânea destinada a homenagear a ilustre Professora Véra Maria de Jacob Fradera, inicio estas despretensiosas linhas externando a minha grande admiração e profunda amizade pela homenageada. Dentre os muitos pontos que temos em comum está o de cultivar o interesse pelo direito comparado e de nos integrarmos àqueles que, em número crescente, vêm se dedicando a investigações nesse campo.

Apraz-me destacar que quando leio os escritos da Professora Véra de Fradera, primorosos em objetividade, erudição e lucidez, recordo-me sempre de suas invejáveis disciplina, determinação e capacidade de organização no desenvolvimento bem-sucedido de projetos de pesquisa, em meio a múltiplas atividades. Vale ressaltar que, graças ao entusiasmo e dinamismo que imprime às suas iniciativas acadêmicas, os vínculos com os comparatistas pátrios e com renomados mestres do exterior se intensificaram, trazendo um ganho inestimável para o fortalecimento, em nosso país, dos estudos juscomparativos.

Essa memorável ocasião me dá o ensejo de externar algumas reflexões sobre a magnitude da repercussão dos meios de comunicação, em particular a internet, em sede de estudos e pesquisas de direito comparado.

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Este assunto, por certo, tem relevância para todos os que, como a home-nageada e a subscritora dessas linhas, lidam com o ensino e a pesquisa nessa área.

A partir do reconhecimento de que o direito comparado, mais do que qualquer outra disciplina para-jurídica, é vulnerável à ação que a internet exerce sobre os que a ela se dedicam, dado o vasto campo espacial e temporal de investigação dos sistemas jurídicos, que requer dados confiáveis e rapidez de acesso a eles (l), focalizo, num plano de exposição que se impõe pela própria natureza do tema, de um lado, algumas das facilidades que a rede inegavelmente proporciona (2) e de outro, os riscos decorrentes de seu uso imoderado (3), levando-me, ao final, a expender considerações sobre a necessidade de seu uso criterioso.

1. O direito comparado como disciplina particularmente vulnerável ao fascínio da internet

Essa vulnerabilidade do direito comparado advém da necessidade de permanente atualização daqueles que são, no dizer de René David, os especialistas do geral, em uma seara extremamente vasta e diversificada de pesquisa.

Com efeito, tenha-se em mente, em primeiro lugar o seu próprio objeto de estudo que é o direito de outros países, e, como tal, envolve investigações não apenas sobre a realidade jurídica, mas também sobre os ideais jurídicos, uma vez que, a exemplo de outras disciplinas jurídicas lida não apenas com o “ser”, mas com o “dever ser”, o que por si só o distingue de outros campos de estudo em que o método comparativo é adotado, tais como a literatura e a religião.

Ainda, no tocante ao seu objeto de estudo, ressalte-se a amplitude do campo abrangido e as diversas dimensões que uma análise comparativa pode comportar. Isso porque, elas implicam um conhecimento especializado dos sistemas jurídicos em jogo e dos temas específicos abordados nas dimensões temporal (histórica) e espacial (geográfica), visando a captar informações não apenas sobre os sistemas estaticamente considerados, mas também em seus movimentos de afastamento e distanciamento relativamente a outros sistemas. A observação dessa dinâmica dos sistemas jurídicos, que vem sendo feita há bastante tempo, sobressai, contudo, nos dias de hoje, pelo fenômeno da globalização e da formação de blocos regionais. A Professora Véra de Fradera examina magistralmente

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este contexto contemporâneo em vários tópicos de sua brilhante Tese de Doutorado, defendida na Universidade de Paris II, Reflexões sobre a Contribuição do Direito Comparado para a Elaboração do Direito Comunitário.2

Recorde-se que a influência, sobre o direito comparado, dos novos instrumentos de pesquisa proporcionados pela tecnologia da informação, foi uma referência constante nas contribuições oferecidas ao Colóquio sobre o presente e o futuro dessa disciplina, realizado, em 1995, sob a iniciativa do Centre Français de Droit Comparé.3Na conclusão do referido Colóquio, o Professor Jacques Robert assim se manifestou: mais do que qualquer outra disciplina, o direito comparado nos dá a justa medida da aceleração da história e do tempo (...).4E mais adiante, observa que, se, por um lado a demanda em direito comparado vem crescendo a olhos vistos, por outro, não bastam os recursos da informática, os conhecimentos lingüísticos, mas são necessários especialistas, consultores. O problema central é a formação dos comparatistas. O que ensinar? A teoria do direito comparado? Os direitos nacionais? Os estudos de casos? Conclui o Professor Jacques Robert sobre a necessidade de envio dos comparatistas para períodos de formação no estrangeiro.5Não obstante o tempo decorrido, essas indagações se mantêm.

Considere-se, outrossim, a natureza interdisciplinar do direito comparado, implicando o aporte de outras disciplinas, não apenas jurídicas e para-jurídicas, mas também de outras áreas, entre elas a sociologia, a história, a política, a antropologia, a religião, a geografia política, etc.

Leve-se, ainda, em conta, o próprio método comparativo que, para propiciar um panorama real do objeto de estudo pressupõe um conhecimento especializado dos sistemas jurídicos em jogo e dos temas focalizados, em suas dimensões temporal e espacial. A aplicação desse método, como se sabe, requer um conhecimento das principais fontes de produção jurídica dos sistemas focalizados, ensejando a preocupação com a atualização permanente da jurisprudência. Para a apreensão confiável dos dados o ideal seria o seu acesso nos idiomas pátrios dos sistemas jurídicos

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examinados, o que obviamente seria impossível. Restam as traduções nos idiomas de comunicação geral, cujo nível qualitativo, muitas vezes, deixa a desejar. O ideal seria o estudo “in loco” por meio de convênios, inter-câmbios, conforme observou o Professor Jacques Robert, mas isso nem sempre é possível, particularmente para os que estão distanciados dos locais dos sistemas em estudo e não dispõem de recursos, nem oficiais, nem pessoais, para lá se deslocarem.

Não é por outra razão que os prólogos de praxe das obras dedicadas ao direito comparado faziam e ainda fazem o inventário das dificuldades de seu estudo, entre elas, obsolescência das fontes de consulta, ambivalência terminológica, etc., o que levava às recomendações de cautela nas conclusões das pesquisas, dadas as visíveis limitações dos elementos informativos.

Destarte, o direito comparado, por real necessidade, se antecipou à organização da informação,6como bem acentua Stéphane Cottin no trabalho abaixo referenciado, no qual discorre sobre as bases documentais de pesquisa. Ela relembra que o direito comparado, em particular, mas em geral todos os ramos do direito, não esperaram a informatização para desenvolver excelentes repositórios de informação primária. Salienta que nada poderia ter sido feito se não fosse a qualidade desses repositórios legislativos, jurisprudenciais, doutrinários, bibliográficos, de resenha de revistas, etc, cuja sistematização, foi, por certo, grandemente facilitada pelos recursos da informática, mas que, bem antes, já existiam.7

2. Facilidades oferecidas pela tecnologia moderna

Para melhor dimensionar-se o salto qualitativo provocado pelos novos instrumentos da tecnologia informática, em termos didáticos e de pesquisa em todos os campos, mas, para o que nos interessa, no do direito com-

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parado, vale justapor alguns exemplos da realidade anterior, não muito distante, dos instrumentos de magistério e de pesquisa no direito, com os que ilustram o avanço ocorrido em curtíssimo tempo e a realidade atual.

2. 1 Quadro anterior

Recorde-se o esforço considerável despendido em termos pessoais, na realização de pesquisas sem o suporte que a tecnologia de hoje proporciona. Levantamentos bibliográficos, estabelecimento de intercâmbios, consulta de documentação especializada, nacional, mas sobretudo estrangeira, tornavam as investigações lentas e extremamente desafiadoras.

A este propósito, vale evocar os méritos daqueles que escavaram, triaram, refletiram, no domínio do direito, sem disporem dos recursos informáticos de hoje. Externo, particularmente, a admiração que me suscitava o saudoso mestre Haroldo Valladão. Muitos anos passados, ainda às voltas com a coleta de elementos para as minhas pesquisas em direito comparado, recordava-me da sua capacidade em coligir dados para a confecção de textos de direito internacional privado e de direito comparado, campos de estudo que demandavam e ainda demandam enorme gama de informações em áreas diferenciadas do direito nacional e estrangeiro. A grande diferença é que naquela época, nem tão longínqua assim, os meios de consulta eram rudimentares e o Professor Valladão enfrentava esta incipiência com energia, perspicácia e tirocínio admiráveis.8

Recordo-me...

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