O princípio do enriquecimento sem causa em direito administrativo

AutorProf. Celso Antônio Bandeira de Mello
CargoTitular da Faculdade de Direito da Universidade Católica de São Paulo
Páginas1-13

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  1. Inúmeras vezes relações jurídico-administrativas, sobreposse contratuais, são ulteriormente proclamadas como nulas e, em tais casos, a Administração normalmente entende que, dado o vício que as enfermava, delas não poderia resultar comprometimento algum do Poder Público, uma vez que "o ato nulo não produz efeitos".

    Assim, esforçada em tal pressuposto, pretende que sua contraparte nada tem a receber por aquilo que realizou, inobstante haja incorrido em despesas e mesmo cumprido prestações das quais a Administração usufruiu ou persiste usufruindo, como ocorre nas hipóteses em que o contratado efetuou obra em proveito do Poder Público.

    Trata-se, pois, de saber se o Direito sufraga dito resultado. Ou seja: importa determinar se a ordem jurídica considera como normal e desejável que, vindo a ser considerada inválida dada relação comutativa, a parte que já efetuou suas prestações deva ficar a descoberto nas despesas realizadas, entendendo-se, assim, que o aumento do patrimônio do beneficiado pela prestação alheia é um incremento justo, merecendo ser resguardado pelo sistema normativo e, correlatamente, que o empobrecimento sofrido pelo adimplente é - também ele - justo, motivo pelo qual não deve ser juridicamente remediado mas, inversamente, cumpre que seja avalizado pelo Direito.

  2. Ao lume de noções jurídicas correntes, em face do princípio da equidade ou mesmo do simples princípio da razoabilidade - que há de presidir qualquer critério interpretativo - parece difícil sufragar a intelecção de que, em todo e qualquer caso e independentemente das circunstâncias engendradoras do vício que enferma a relação, caiba àPage 2 contraparte da Administração arcar com os custos que ela lhe causou e que, inversamente, esta última deva absorver as vantagens que captou sem indenizar o onerado. Mesmo a um primeiro súbito de vista, tão desatado entendimento apresenta-se como visivelmente chocante, repugnando ao próprio senso comum e a um mínimo de sensibilidade jurídica ou a rudimentos de ética social.

    De fato, não é aceitável, em boa razão, que o engajamento de dois sujeitos, em relação reputada inválida - se a invalidade proclamada foi fruto da ação conjunta destas partes contrapostas - deva receber do Direito um beneplácito acobertador dos efeitos benéficos que o vínculo invalidado fez surdir para uma parte e a confirmação dos efeitos detrimentosos que gerou para a outra.

  3. É que, como em obra teórica o dissemos:

    "Os atos inválidos, inexistentes, nulos ou anuláveis, não deveriam ser produzidos. Por isto não deveriam produzir efeitos. Mas o fato é que são editados atos inválidos (inexistentes, nulos e anuláveis) e que produzem efeitos jurídicos. Podem produzí-los, até mesmo per omnia secula, se o vício não for descoberto ou se ninguém os impugnar.

    É errado, portanto, dizer-se que os atos nulos não produzem efeitos. Aliás, ninguém cogitaria da anulação deles ou de declará-los nulos se não fora para fulminar os efeitos que já produziram ou que podem ainda vir a produzir. De resto, os atos nulos e os anuláveis , mesmo depois de invalidados, produzem uma série de efeitos. Assim, por exemplo, respeitam-se os efeitos que atingiram terceiros de boa-fé. É o que sucede quanto aos atos praticados pelo chamado "funcionário de fato", ou seja, aquele que foi irregularmente preposto em cargo público.

    Além disto, se o ato nulo ou anulável produziu relação jurídica da qual resultaram prestações do administrado (pense-se em certos casos de permissão de uso de bem público ou de prestação de serviço público) e o administrado não concorreu para o vício do ato, estando de boa-fé, a invalidação do ato não pode resultar em locupletamento da Administração à custa do administrado e causar-lhe um dano injusto em relação a efeitos patrimoniais passados.

    Na invalidação de atos administrativos há que distinguir duas situações;

    (a) casos em que a invalidação do ato ocorre antes de o administrado incorrer em despesas suscitadas seja pelo ato viciado, seja por atos administrativos precedentes que o condicionaram (ou condicionaram a relação fulminada). Nestas hipóteses não se propõe qualquer problema patrimonial que despertasse questão sobre dano indenizável.

    (b) casos em que a invalidação infirma ato ou relação jurídica quando o administrado, na conformidade deles, já desenvolveu atividade dispendiosa, seja para engajar-se em vínculo com o Poder Público em atendimento à convocação por ele feita, seja por ter efetuado prestação em favor da Administração ou de terceiro. Page 3

    Em hipóteses desta ordem, se o administrado estava de boa fé e não concorreu para o vício do ato fulminado, evidentemente a invalidação não lhe poderia causar um dano injusto e muito menos seria tolerável que propiciasse, eventualmente, um enriquecimento sem causa para a Administração. Assim, tanto devem ser indenizadas as despesas destarte efetuadas, como, a fortiori, hão de ser respeitados os efeitos patrimoniais passados atinentes à relação atingida. Segue-se, também que, se o administrado está a descoberto em relação a pagamentos que a Administração ainda não lhe efetuou, mas que correspondiam a prestações por ele já consumadas, a Administração não poderia eximir-se de acobertá-las, indenizando-o por elas.

    Com efeito, se o ato administrativo era inválido, isto significa que a Administração ao praticá-lo, feriu a ordem jurídica. Assim, ao invalidar o ato, estará, ipso facto , proclamando que fora autora de uma violação da ordem jurídica. Seria iníquo que o agente violador do Direito, confessando-se tal, se livrasse de quaisquer ônus que decorreriam do ato e lançasse sobre as costas alheias todas as conseqüências patrimoniais gravosas que daí decorreriam, locupletando-se, ainda, à custa de quem, não tendo concorrido para o vício, haja procedido de boa-fé . Acresce que, notoriamente, os atos administrativos, gozam de presunção de legitimidade . Donde, quem atuou arrimado neles, salvo se estava de má-fé ( vício que se pode provar, mas não pressupor liminarment e), tem o direito de esperar que tais atos se revistam de um mínimo de seriedade. Este mínimo consiste em não serem causas potenciais de fraude ao patrimônio de quem neles confiou - como, de resto, teria de confiar.

    Aliás, a solução que se vem de apontar nada mais representa senão uma aplicação concreta do disposto no art. 37, § 6º , da Constituição, na qual o princípio da responsabilidade do Estado está consagrado de maneira ampla e generosa, de sorte a abranger tanto responsabilidade por atos ilícitos quanto por atos lícitos (como o seria correta fulminação de atos inválidos) (Curso de Direito Administrativo, Malheiros Editores, 8ª ed., 1996, pags. 286-287 - todos os grifos, salvo o penúltimo, são do original).

    Em outro trecho da mesma obra, ao tratarmos do tema licitação, tornamos a focalizar o assunto nos seguintes termos:

    "Conforme deixamos anotado no capítulo próprio (Cap. VII, nº 167), ao proceder à invalidação a Administração estará, ipso facto, proclamando em abertas e publicadas que, em momento anterior, afrontou o Direito. Seria absurdo que o violador do Direito, justamente ao se auto-acusar ou ao se reconhecer procedentemente acusado de transgressor do Direitocondição para invalidação do ato - lançasse sobre ombros alheios gravames patrimoniais decorrentes de ato seu. Já se a invalidação é decretada pelo Judiciário, a inculca de infrator da ordem jurídica ainda é mais significativa, pois terá provindo do Poder supremamente qualificado para a dicção do Direito no caso concreto.

    Acresce que, dada a presunção de legitimidade dos atos administrativos, os administrados que atuaram em sua conformidade nada mais fizeram senão Page 4 arrimar-se em um esteio pressupostamente sério e sólido. Seria descabido, então, que sofressem prejuízos exatamente por agirem segundo o que...

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