Enriquecimento ambiental, privação social e manipulação neonatal

AutorCarlos Roberto de Oliveira Nunes - Rogério F. Guerra - Vera Sílvia Raad Bussab
Páginas366-394

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Introdução

No* que se refere aos mamíferos e às aves, as pressões cotidianas enfrentadas pelos indivíduos são tão diferenciadas, que seria impossível, por mecanismos de seleção natural, o pre-estabelecimento de um repertório comportamental adaptativo e completo, capaz de garantir a sobrevivência e a reprodução. Parece que a seleção natural favoreceu a plasticidade cognitiva e comportamental, tornando os indivíduos funcionalmente adaptados às contingências ambientais que enfrentam durante o desenvolvimento ontogenético. Este pressuposto leva às deduções de que a experiência interfere sobre o comportamento futuro e de que a variabilidade nos tipos de situações enfrentadas por animais, incluindose os humanos, acarreta diferenças psicológicas intra e interespecíficas. De fato, as experiências precoces de um animal podem influenciar seu comportamento adulto em uma série de tarefas; por exemplo, ratos criados em ambientes grandes e complexos apresentam habilidades superiores de resolução de problemas em relação a conspecíficos criados em condições mais restritas (ROSENZWEIG, 1966).

A maior parte dos padrões comportamentais emitidos pelos animais acarreta consequências que podem interferir sobre (a) as probabilidades futuras de emissões dos padrões de comportamento e (b) as propriedades do ambiente no qual estão submetidos.

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Neste sentido, os animais não são passivos em relação às pressões do ambiente. De qualquer modo, elas fazem parte dos fatores determinantes do comportamento, principalmente do período do nascimento até o início da vida adulta, quando o sistema nervoso parece mais sensível à adaptação às pressões ambientais. Por esta razão, as pesquisas sobre enriquecimento ambiental freqüentemente têm sido focadas no sentido de investigar os impactos de diferentes condições ambientais de criação sobre a organização comportamental e/ou do sistema nervoso dos animais estudados (FERNÁNDEZ-TERUEL et al., 2002, NAKA et al., 2002).

Os objetivos deste trabalho são: a) expor evidências experimentais que especificam as conseqüências de três diferentes modelos de estimulação ambiental aplicados em pesquisas comportamentais e neurocientíficas, desenvolvidos para elucidar os mecanismos subjacentes à variabilidade do desenvolvimento do comportamento; e b) sugerir indicações de como a aplicação destes modelos - o enriquecimento ambiental, a manipulação neonatal e a privação social – pode contribuir para a compreensão do comportamento humano e de seus processos subjacentes.

Implicações do ambiente de criação sobre o comportamento

Nos estudos com animais, os efeitos das variáveis ambientais sobre a aprendizagem, isto é, as mudanças duráveis do comportamento decorrentes de experiências específicas, têm sido feitos através de diversos métodos, como a privação materna (ANISMAN et al., 1998), os condicionamentos operante e respondente (CATANIA, 1999), o enriquecimento ambiental, a manipulação neonatal (FERNÁNDEZ-TERUEL et al., 2002) e o isolamento social (WÜRBEL, 2001), e cada um destes modelos de estimulação tem implicações diferentes sobre o comportamento, a fisiologia e a qualidade de vida dos sujeitos.

O enriquecimento ambiental consiste na exposição de animais cativos jovens e adultos a ambientes ricos em estimulação sensorial, gerada por alimento escondido, objetos inanimados, como rodas de atividades, canos e brinquedos, e/ou caixas com infra-estrutura mais complexas, contendo tocas, galerias de túneis e/ou plataformas com diferentes níveis de acesso (ver Chamove, 1989; ZIMMERMANN et al., 2001; MELLEN e MACPHEE, 2001). A manipulação neonatal é a forma mais comum de estimulação precoce (FERNÁNDEZ-TERUEL et al., 2002),Page 368e tipicamente consiste, em ratos, por exemplo, no manuseio cuidadoso do filhote pelos experimentadores, diariamente, por alguns minutos, durante as primeiras duas semanas de vida (ver LUCION et al., 2003). Os efeitos da estimulação social têm sido investigados através da comparação, em diversos tipos de testes, entre sujeitos criados em grupos de conspecíficos e outros criados isoladamente (ver WÜRBEL, 2001); apesar de que diversas pesquisas têm trabalhado conjuntamente com os efeitos do enriquecimento ambiental e social, em contraposição à privação de estímulos inanimados e sociais (ver ROSENZWEIG et al., 1978; SMITH et al., 2003).

O psicólogo canadense Donald O. Hebb foi, nos anos 40 do século passado, o primeiro pesquisador a se interessar pelos efeitos do enriquecimento ambiental sobre o comportamento. Ele descobriu que animais criados em ambientes maiores e com mais variedade de objetos e configurações espaciais do que aqueles então normalmente impostos em criadouros e laboratórios posteriormente apresentavam habilidade superior de aprendizagem, comparativamente em relação a outros animais criados em ambientes menores e não enriquecidos (FERNÁNDEZ-TERUEL et al., 2002). Krech e colaboradores (1962) submeteram ratos por um período de um mês a ambientes enriquecidos ou não enriquecidos, depois testaram-nos numa seqüência de reversões de problemas de discriminação. No procedimento de discriminação de luz-escuro, os grupos não diferiram, mas quando foram realizadas as reversões, e o problema tornou-se mais complexo, os animais criados em ambiente enriquecido passaram a desempenhar de forma bastante superior aos demais.

Os ambientes enriquecidos, isto é, aqueles que provêm ao animal mais oportunidades para experiências perceptuais e padrões comportamentais variados (SCHWARTZ, 1964), habilitam-nos a desempenhar melhor sobre uma variedade de tarefas, quando comparados a animais criados em ambientes mais pobres (ROSENZWEIG, 1966). Em ratos, o enriquecimento ambiental, independentemente das experiências sociais anteriores, melhora principalmente a aprendizagem e a memória espacial (VAN PRAAG, 2000; SCHRIJVER et al., 2002), e acelera a habituação à novidade (ZIMMERMANN et al., 2001), sem necessariamente gerar potencialização de comportamento exploratório (SCHRIJVER et al., 2002). Em síntese, aparentemente os animais criados em ambientes enriquecidos parecem apresentar uma organização do comportamento exploratório mais complexa e diversificada do que os animais criados em ambientes não enriquecidos (FERNÁNDEZ-TERUEL et al., 2002).

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Num procedimento de teste de discriminação, camundongos eram inseridos num labirinto aquático e deviam nadar até um estímulo não discriminativo (SD) ou um discriminativo (SD) indicados por padrões de tela escolhidos pelos experimentadores e apresentados em dois monitores de computador. As apresentações de SD e SD, entre os dois monitores, eram aleatoriamente alternadas, e cada monitor, por tentativa, apresentava apenas um dos padrões. SD indicava a existência, próxima do monitor em questão, de uma plataforma invisível ao nível da água, onde os sujeitos podiam subir. Foi verificado que, em geral, os camundongos criados em ambiente enriquecido e não enriquecido aprenderam a discriminar os padrões, nadando até o monitor com o estímulo discriminativo. Porém, uma vez alcançado um nível equivalente e assintótico de acertos entre os grupos, os experimentadores começaram a aproximar, ao longo das tentativas, a gradação de diferença entre os padrões de estímulos, e verificaram que os camundongos criados sob condição enriquecida foram capazes de responder funcionalmente a estímulos discriminativos e não discriminativos mais semelhantes entre si do que os sujeitos do grupo-controle, criados em ambientes não enriquecidos, sugerindo que o enriquecimento ambiental pode desenvolver as funções visuais dos camundongos (PRUSKY et al., 2002).

O labirinto de Hebb e Williams é um recurso utilizado para testar as habilidades de aprendizagem e memória espacial. Por exemplo, podem ser colocados alimentos em partes específicas, que os sujeitos experimentais aprendem a encontrar para comer. Pode-se também modificar os caminhos do labirinto para acesso aos reforçadores, abrindo-se e fechando-se passagens. Os ratos criados em ambientes enriquecidos têm melhor desempenho do que os criados em ambiente não enriquecido, alcançando mais rapidamente o alimento e entrando menos freqüentemente em braços errados do labirinto. Os animais com cérebro intacto apresentam melhor desempenho do que os que sofreram lesão cerebral pós-natal. Além disso, os animais lesionados criados em ambiente enriquecido apresentam desempenho superior aos lesionados criados em ambiente-padrão, e o efeito potencializador do enriquecimento sobre o desempenho no labirinto dos animais lesionados é proporcionalmente superior ao efeito potencializador exercido sobre os animais não lesionados (SCHWARTZ, 1964).

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O enriquecimento ambiental influencia o desempenho de ratos em tarefas de condicionamento aversivo. Os animais criados em ambientes enriquecidos, quando submetidos a situações estressantes, apresentam-se menos sensíveis às condições aversivas impostas do que animais criados em ambientes-padrão de laboratório, exibindo maior capacidade de adaptar-se e responder funcionalmente a estas situações (ESCORIHUELA et al., 1994). Uma exceção interessante foi encontrada por Klein e colaboradores (1994), cujos sujeitos experimentais, ratos criados em ambientes enriquecidos, expunham-se mais freqüentemente aos potenciais predadores apresentados, uma condição normalmente aversiva, do que os sujeitos do grupo controle.

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