O papel do estado democrático de direito enquanto condição do controle judicial de políticas públicas de saúde no Brasil: preferência ou a inevitabilidade do julgamento?

AutorJânia Maria Lopes Saldanha; Hector Cury Soares
Páginas209-246

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Introdução

É de sobremaneira importante o papel do Poder Judiciário no controle de políticas públicas, mormente, o avanço de ações, do ponto de vista políticoeconômico, liberalizantes, as quais representam retrocesso para um País que conquistou um regime democrático há pouco mais de vinte anos. 12A presença do Estado (social e) democrático de Direito é jovem no Brasil. Entretanto, o legislador constituinte não se furtou ao seu desiderato e incluiu já no primeiro artigo3 a constituição do Estado democrático de Direito, elencando nos incisos o conteúdo desse Estado.

Todavia, em um país com altos índices de desigualdade social e, paradoxalmente, inserto entre as dez maiores economias do mundo,4 não se pode ignorar o papel do Estado na busca da gradual diminuição e conseqüente extirpação de índices de pobreza que, em realidade, representam a degradação de parcela da população diuturnamente. A Constituição do Brasil aparece sempre numa relação de distanciamento com a realidade social, na medida em que sustenta o direito fundamental à saúde e, por conseguinte, um dever da Administração Pública elaborar políticas públicas consoantes ao desiderato constitucional.

Para se ter ideia, o sistema público de saúde tem a atribuição constitucional de oferecer a todos os brasileiros o acesso à saúde segundo um ideal baseado na universalidade, integralidade, resolubilidade e acessibilidade. É o único acesso aos serviços de saúde para 140 milhões de brasileiros (70% da população), nas palavras do Ministro da Saúde José Gomes Temporão, "o SUS tem uma produção anual de 2,3 bilhões de atendimentos ambulatoriais, 16 mil transplantes, 215 mil cirurgias cardíacas, 11,3 milhões de internações e 9 milhões de procedimentos de rádio e quimioterapia"5. Ainda, o Ministro afirmou que de 2002 até 2008 o orçamento do Ministério da Saúde triplicou, no tocante à assistência farmacêutica e, mesmo assim, mostra-se insuficiente. Page 210

Contudo, há um evidente fracasso do Estado brasileiro como provedor dos serviços essenciais para a maioria de sua população, principalmente, à população mais carente. Corolário dessa situação de distanciamento entre a população e o acesso a políticas públicas de saúde é o crescimento de demandas judiciais para incumbir ao Poder Executivo o fornecimento de determinado medicamento ou tratamento de saúde. Tal é típico do Estado democrático de Direito, que permite ao Judiciário manifestar-se nas políticas públicas, entretanto, sempre sob a égide da Constituição. Não obstante, não cabe ignorar dois aspectos intrínsecos: a tensão entre os instrumentos processuais individuais e coletivos e, de outra parte, os custos do deferimento de todo e qualquer medicamento face o orçamento público.

Com efeito, analisar-se-á, a partir dos citados aspectos - já trabalhados num primeiro momento - em primeiro lugar, os momentos constitucionalmente adequados à interferência do Poder Judiciário nas políticas públicas de saúde, adequando-se a constituição de sentido ao Estado (social e) Democrático de Direito. Em segundo lugar, expor-se-ão os instrumentos previstos constitucionalmente e em leis infraconstitucionais ao controle de políticas públicas, bem como, o rol dos legitimados constitucionalmente, também, dentro de uma constituição de sentido ao Estado Democrático de Direito.

1 Da elaboração à execução de políticas públicas de saúde no Brasil

É importante buscar responder ao longo do texto se o Poder Judiciário está preparado a exercer um papel expressivo no controle judicial de políticas públicas. Não se trata de preparo do ponto de vista material, isto é, de conhecimento daqueles habilitados a julgar diferentes demandas, mas do preparo dentro da ótica do Estado democrático de Direito. Como afirmado anteriormente, é preciso compreender que o direito - neste momento histórico - não é mais ordenador, como na fase liberal; tampouco é (apenas) promovedor, como era na fase conhecida por "direito do Estado social" (que nem sequer ocorreu na América Latina); na verdade, o direito, na era do Estado Democrático de Direito, é um plus normativo/qualitativo em relação às fases anteriores, porque agora é um auxiliar no processo de transformação da realidade. Page 211

E, é exatamente por isso que aumenta sensivelmente - e essa questão permeou, de diversos modos, as realidades jurídico-políticas dos mais diversos países europeus e latino-americanos - o pólo de tensão em direção da grande intervenção contramajoritária: a jurisdição constitucional, que, no Estado Democrático de Direito, vai se transformar no garantidor dos direitos fundamentaissociais e da própria democracia6.

Trata-se da vocação do tempo presente à jurisdição em contraposição ao protagonismo ocupado pelo legislador no início do Século XX7. Pierre Rosanvallon8 indica dois fatores importantes que, segundo ele, seriam os responsáveis pelo desencadeamento da judicialização da política no mundo ocidental. O primeiro decorreria da instabilidade e fragilidade dos próprios sistemas políticos. O segundo, seria o quadro de declínio da própria reação dos governos às demandas da cidadania. Assim haveria uma assimetria entre o chamado crescente à accountability - o prestar contas - e o princípio da responsabilidade - a resposta à sociedade -. Desse modo, o Estado de Direito passa a ser determinado com base na Constituição ao qual se refere.

A Constituição passa a vincular todos os poderes públicos, razão pela qual não se pode ter por válida a ação do poder público que contrariar preceitos constitucionais. Por outro lado, ao dar-se um patamar especial à Constituição exigese a garantia concreta da constitucionalidade das decisões. A existência de um órgão que seja responsável pelo controle de constitucionalidade consiste na condição de possibilidade para a concretização da Carta Constitucional. Isto é um esboço daquilo que se pode chamar Estado Constitucional, um Estado limitado pela Constituição.

Para além de um plus normativo, a inserção do elemento democrático ao dar sentido ao Estado Social Direito, no caso brasileiro ou - como aduzido - na América Latina, impõe-se tendo em vista o fim de um regime autoritário, que tem como marco democrático a Constituição de 1988. Disso, podem-se extrair alguns elementos que ajudam na compreensão do aumento de demandas judiciárias para impor ao Executivo o que se chama "fazer políticas públicas". A judicialização das políticas públicas é vista como um perfil inerente a reestruturação democrática de países que foram fustigados com regimes autoritários9. Aponta-se uma substancial desconfiança na corporificação executiva da Administração Pública, a qual recebe apontamentos, por meio da Constituição, de meios salutares de realização de políticas públicas. Page 212

A falibilidade na elaboração e execução de políticas públicas edita a necessidade de que algum dos Poderes dê, de fato, existência a tais. Com efeito, geram-se demandas ao Poder Judiciário postulando políticas públicas10. O caso do direito a saúde tem sido paradigmático, vez que há um programa constitucional para que o Estado promova o seu desenvolvimento indicando, inclusive, as fontes orçamentárias e incumbindo a todos os entes federativos a comum participação. Mesmo assim, há um excessivo número de demandas judiciais11 requerendo assistência médica. A preocupação com tamanho número de demandas refletiu na convocação por parte do Supremo Tribunal Federal da Audiência Pública n.º 4. Diz o instrumento de convocação,

O PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, no uso das atribuições que lhe confere o art. 13, inciso XVII, e com base no art. 363, III, ambos do Regimento Interno, Considerando os diversos pedidos de Suspensão de Segurança, Suspensão de Liminar e Suspensão de Tutela Antecipada em trâmite no âmbito desta Presidência, os quais objetivam suspender medidas cautelares que determinam o fornecimento das mais variadas prestações de saúde pelo Sistema Único de Saúde - SUS (fornecimento de medicamentos, suplementos alimentares, órteses e próteses; criação de vagas de UTI; contratação de servidores de saúde; realização de cirurgias; custeio de tratamentos fora do domicílio e de tratamentos no exterior; entre outros); Considerando que tais decisões suscitam inúmeras alegações de lesão à ordem, à segurança, à economia e à saúde públicas; Considerando a repercussão geral e o interesse público relevante das questões suscitadas; CONVOCA: Audiência Pública para ouvir o depoimento de pessoas com experiência e autoridade em matéria de Sistema Único de Saúde, objetivando esclarecer as questões técnicas, científicas, administrativas, políticas, econômicas e jurídicas relativas às ações de prestação de saúde [...]12

A partir da constatação da realização da audiência pública, nota-se a importância e a repercussão do tema no STF. Além disso, há a necessidade do Tribunal ouvir especialistas, dos mais diversos campos, para poder estabelecer critérios adequados para as decisões nas quais versem o direito à saúde ou a controle judicial de políticas públicas de saúde. Apenas entre os anos objeto do presente estudo, há cerca 74 acórdãos e 348 decisões monocráticas, quando o termo pesquisa é direito e saúde. Se o critério eleito para a pesquisa no sítio do STF for políticas e públicas e controle o número baixa para 2 acórdãos e 25 decisões monocráticas. Esse dado tende a confirmar como será observado em primeiro lugar a tendência à via judicial individual13 de solução de conflito, preterindo a via coletiva, Page 213 a qual, entretanto, soa ser o instrumento constitucionalmente adequado ao controle de políticas públicas; em segundo lugar, dá mostras do número exorbitante de ações no tribunal...

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