O Enquadramento Legal da Publicidade Infanto-Juvenil na UE: Presente e Futuro

AutorJ. Pegado Liz
CargoAdvogado Conselheiro do CESE (Bruxelas)
Páginas83-119

Page 84

Excertos

“Os diferentes parâmetros dos spots publicitários autorizados, o espaço entre os spots e as exceções conforme o tipo de programas são substituídos por uma regra geral segundo a qual a transmissão de filmes realizados para a televisão, obras cinematográficas, programas infantis e noticiários pode ser interrompida por publicidade e ou televendas uma vez por cada período de 30 minutos”

“A diretiva deveria ter previsto a possibilidade de os estados-membros atribuírem aos tribunais, quando existir um procedimento civil ou administrativo, as competências que lhes permitam exigir aos organismos de radiodifusão a apresentação de provas relativas à não retribuição da comunicação audiovisual”

“No que respeita à publicidade que utiliza crianças, relevam-se fundamentalmente os aspectos éticos da dignidade da pessoa humana e dos direitos da criança, especialmente consagrados em variados textos convencionais internacionais e ao nível da União Europeia, de que se destacam hoje disposições da Carta dos Direitos Fundamentais”

“No que toca ao aspecto da publicidade dirigida especialmente a crianças, é mister ter presente que as crianças não filtram a comunicação publicitária, especialmente quando a mensagem é excessiva e marcada pela repetição à exaustão do mesmo anúncio, pelo que assumem todas as mensagens como verdadeiras e convertem-se em consumidores compulsivos”

Page 85

“Um dos instintos humanos mais básicos é proteger um filho da dor e do sofrimento. As crianças representam o nosso futuro global e o desejo de guardá-las das muitas forças que podem destruir sua esperança e inocência é universal. Fazê-lo é uma parte essencial de nossa aspiração mais ampla de promover a segurança humana e criar sociedades estáveis e pacíficas.”

Lloyd Axworthy, ministro de Relações Exteriores do Canadá, Acra, Gana, Abril de 2002 (in “Honrar a Criança”, ed. Instituto Alana, 2009, p. 231)

I – Introdução e definição do objeto

1.1. Importa, antes de mais, deixar bem claro que o objeto deste texto não é a regulamentação da publicidade infanto-juvenil nos países europeus ou, sequer, nos países pertencentes à União Europeia1.

1.2. Mas também não versa sobre a regulamentação europeia acerca do tema, pela simples razão de que ela praticamente não existe. Com efeito, é mister esclarecer desde já que a realidade sobre que nos debruçamos é uma ausência, um vazio legal. O que precisamente não existe ao nível da União Europeia é um quadro legal para a publicidade infanto-juvenil. Nessa medida o artigo não versa tanto sobre o direito constituído mas sobre o direito a constituir; não se refere preferencialmente à legge lata mas antes à lege ferenda.
1.3. Mais difícil ainda no tratamento do tema é o fato de a atitude política geral da Comissão Europeia vir sendo de recusa sistemática de incluir a publicidade infanto-juvenil como um tema autónomo e importante da agenda europeia. Por isso o presente artigo versa sobretudo as propostas que ao longo do tempo fundamentalmente o Comité Económico e Social Europeu tem envidado no sentido do reconhecimento deste tema a nível das instituições comunitárias e de como a Comissão Europeia tudo tem feito para o desvalorizar e menorizar, relegando-o sistematicamente para o nível nacional e pretendendo que se trata de uma “questão de gosto” ligada às diferenças culturais das sociedades civis.

II – O quadro legal da publicidade na UE

2.1. Para bem se comprender o âmbito e a dimensão da lacuna ou do vazio legal na UE quanto à publicidade infanto-juvenil é mister delinear, ainda que em traços gerais e sumários, o enquadramento legal da publicidade no sistema jurídico da UE.

Page 86

2.2. Por manifesta falta de espaço não se fará aqui uma evocação histórica da regulamentação da publicidade na UE2. Mas é pertinente recordar que as principais diretivas comunitárias sobre publicidade respondem à questão da necessidade de tratamento, a nível comunitário, de alguns aspectos da publicidade, no respeito dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade3.

2.3. Em particular, os aspectos da publicidade enganosa, da publicidade comparativa, da publicidade relativa a produtos alimentares e da publicidade através da radiodifusão são os domínios em que o legislador comunitário cedo sentiu a necessidade de introduzir alguma harmonização legislativa, com os objetivos determinantes de assegurar a eliminação ou diminuição de distorções na concorrência, de um lado, e de garantir uma adequada proteção dos consumidores, na altura de decidirem a aquisição de bens ou a utilização de serviços, de outro lado.
2.4. Pelo menos nestes aspectos, o legislador comunitário constatou ainda que as diferenças existentes nas legislações nacionais não só conduziam a uma proteção insuficiente ou, pelo menos, diversa, dos interesses em causa, mas constituíam um entrave à realização de campanhas publicitárias transfronteiras e, assim, dificultavam a livre circulação de produtos e de prestação de serviços e impediam, consequentemente, a realização do mercado interno.
2.5. No entanto, é bem claro que a União Europeia nunca pretendeu definir um código comunitário da publicidade. Limitou-se, ao contrário, a regular, supletivamente, alguns aspectos que deveriam ser objeto de aproximação nas legislações dos estados-membros, por considerar tratar-se de domínios essenciais onde a sua falta ou as diferenças nas legislações nacionais eram de molde a pôr em risco os valores antes mencionados, ou onde a própria autorregulação se revelava insuficiente para garantir um tratamento uniforme e satisfatório das situações.

No resto, a EU deixou ao critério e ao cuidado dos estados-membros a faculdade de regular, como melhor entendessem, a atividade publicitária.
2.6. Todas as diretivas mais antigas publicadas nesta matéria são, assim, diretivas de harmonização mínima, deixando aos estados-membros a possibilidade de “manterem ou adotarem disposições que visem assegurar uma proteção mais extensa dos consumidores, das pessoas que exercem uma atividade comercial, industrial, artesanal ou liberal, bem como do público em geral” (artº 7º da Diretiva 84/450/CE e artigo 2º, n. 9, da Diretiva 98/55/CE e artigo 19º da Diretiva 89/552/CE).

Page 87

2.7. Neste entendimento, os domínios objeto de harmonização comunitária foram, especificamente, os seguintes:
a) a publicidade enganosa e as suas consequências desleais;
b) as condições segundo as quais a publicidade comparativa deve ser considerada lícita;
c) os meios judiciais e não judiciais, adequados e eficazes, para lutar, preventiva e repressivamente, contra a publicidade enganosa e fazer respeitar as disposições relativas à publicidade comparativa;
d) a etiquetagem e a publicidade relativa a produtos alimentares;
e) a publicidade a remédios para uso humano e a serviços médicos; f) a publicidade através da televisão, e aí,
em particular, as televendas, a publicidade ao
tabaco, a medicamentos e a bebidas alcoólicas, e
a proteção de menores.

Foram estes aspectos que, melhor ou pior,
têm sido objeto de transposição nos direitos
nacionais, sendo certo que os diversos relatórios
periódicos relativos à aplicação das normas de
transposição têm revelado diferenças substanciais
ao nível da sua efetividade e da proteção dos consumidores, nos diferentes estados-membros.
2.8. De notar que fora da harmonização comunitária, ainda que mínima, tem ficado, até hoje, a publicidade que usa crianças.
2.9. Duas iniciativas mais recentes a nível comunitário merecem, no entanto, referência especial4:

  1. A Diretiva 2005/29/CE, do Parlamento e do Conselho, de 11 de maio de 2005, relativa às práticas comerciais desleais; e
    b) A Diretiva 2010/13/UE, do Parlamento e do Conselho, de 10 de março de 2010, visando a alteração da Diretiva TV sem fronteiras.
    2.10. A Diretiva 2005/29/CE5, relativa às práticas comerciais desleais, introduziu profunda alteração nos aspectos que mais diretamente nos interessam agora. Esta diretiva, ao regular o que apelida de “práticas comerciais desleais”, veio, no que em especial se refere à matéria de publicidade, provocar uma cisão entre o regime B2B e o regime B2C, que eram tratados conjuntamente, e sem distinção, nas anteriores diretivas sobre publicidade enganosa e comparativa e nos direitos internos dos estados-membros.
    2.11. Com efeito, reconhecendo embora que “as práticas comerciais desleais, incluindo a publicidade desleal (...) prejudicam diretamente os interesses

Page 88

económicos dos consumidores e consequentemente prejudicam indiretamente os interesses económicos de concorrentes legítimos”, a diretiva entendeu, no entanto, concentrar-se apenas nos primeiros.

Assim, a diretiva “não abrange nem afeta as legislações nacionais relativas a práticas comerciais desleais que apenas prejudiquem os interesses económicos dos concorrentes ou que digam respeito a uma transação entre profissionais; (...) a presente diretiva também não abrange nem afeta as disposições da Diretiva sobre publicidade susceptível de enganar as empresas mas não os consumidores e sobre publicidade comparativa” (considerando 6).

A diretiva deixa ainda para decisão futura e eventual a ponderação cuidadosa da “necessidade de ações comunitárias no âmbito da concorrência desleal para além do âmbito da presente diretiva e se necessário fazer uma proposta legislativa para cobrir esses outros aspectos da concorrência desleal” relativos a práticas...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT