Enfiteuse contemporânea

AutorRodrigo Marcos Antonio Rodrigues
Páginas67-95

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Temos por enfiteuse contemporânea o instituto aplicado nos moldes dos Códigos Civis de 1916 e 2002 e da legislação especial que rege os bens da União. No capítulo anterior fizemos importante abordagem à origem histórica da enfiteuse, iniciando pelo Direito Romano, passando pela Idade Média até chegar ao Brasil.

Da aplicação da enfiteuse em terras brasileiras, inicialmente com as diretrizes lusas, “o direito brasileiro despiu o instituto de certos formalismos e complicações, que lhe haviam enxertado as práticas medievais” (BEVILAQUA, [197-?], p. 1145).

A partir deste ponto, esmiuçaremos o instituto da forma que é visto e aplicado nos dias atuais, abordando todas as suas principais características, iniciando as distinções que se fizerem necessárias em relação aos bens públicos e particulares.

1. Conceito

A enfiteuse é a forma de utilização de uma propriedade em que o proprietário, por meio de um contrato perpétuo,

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atribui a outrem o domínio útil do imóvel, passando este adquirente a ser chamado de foreiro ou enfiteuta, permanecendo o proprietário com o domínio direto do imóvel, criando, desta forma, a figura enigmática do senhorio direto, uma alusão à relação que existia na Idade Média entre o senhor das terras e seus vassalos, conforme já abordado.

O conceito da enfiteuse está bem posto no artigo 678 do Código Civil de 1916, que desta forma dispõe: “Dá-se a enfiteuse, aforamento ou emprazamento, quando por ato entre vivos, ou de última vontade, o proprietário atribui à outro o domínio útil do imóvel, pagando a pessoa, que o adquire, e assim se constitui enfiteuta, ao senhorio direto, uma pensão, ou foro, anual, certo e invariável”.

A fragmentação do domínio pleno em direto e útil é algo sui generes. Orlando Gomes ao comentar esse processo de fragmentação, discorre: “Costuma-se dizer que o senhorio é o titular do domínio eminente ou direto e o foreiro do domínio útil, em alusão ao processo de fragmentação da propriedade realizado no direito medieval [...] A soma dos poderes que o foreiro enfeixa em suas mãos é tão grande que se traduz pela locução domínio útil. Assistem-lhe, com efeito, os direitos de possuí-la, transformá-la e transmiti-la” (1988, p. 247).

A enfiteuse é o mais amplo dos direitos reais sobre coisa alheia, cabendo ao enfiteuta todos os direitos que conhecemos sobre a propriedade: usar, gozar, fruir e dispor, mesmo que de forma limitada, como ainda abordaremos. Daí a locução “domínio útil”, como bem asseverou o autor acima citado.

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Clóvis Bevilaqua esclarece que o domínio útil: “[...] no sentido em que o direito moderno emprega esta expressão, consiste no direito de usufruir a coisa do modo mais completo [...] É como diz Lafayette, a soma de todos os direitos elementares do domínio, separados da pessoa do dono do imóvel e reunidos na pessoa de um terceiro” ([197?], p. 1146).

Washington de Barros Monteiro (2007, p. 265) entende que a existência de dois domínios distintos sobre a mesma propriedade, útil e direto, não é acertada e não concilia com a técnica do direito positivo pátrio. Para esse consagrado autor, o enfiteuta é mero titular de um jus in re aliena, reportando-se ao Direito Romano, que, como já vimos, não havia fragmentação do domínio e outras afetações ocorridas na era medieval. Portanto, o senhorio direto seria o único e verdadeiro titular do domínio. Permitimo-nos discordar de tal entendimento. A fragmentação do domínio em útil e direto não é mera ficção. Conforme ainda veremos, o domínio útil pode ser até mesmo usucapido sem afetar o domínio direto do senhorio, e o que seria a sentença numa ação de usucapião, se não a declaração de aquisição da propriedade imóvel?

Silvio Rodrigues, corroborando o nosso entendimento, desta forma leciona: ”Da natureza perpétua da enfiteuse decorre, para o enfiteuta, uma prerrogativa importante, ou seja, a de transmitir, por ato negocial ou por sua morte (CC/1916, art. 681), o conjunto de seus direitos. Note-se

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que, em virtude dessa circunstância, surgem e permanecem indefinidamente dois domínios paralelos sobre um mesmo prédio: um domínio direto, de que é titular o senhorio, e um domínio útil, de que é titular o foreiro” (2003, p. 270) (Grifos nossos).

Na enfiteuse aplicada aos bens públicos, o domínio útil corresponde a 83% do domínio pleno, permanecendo o remanescente de 17% em poder do senhorio, diga-se União.

Pois bem, podemos notar que a fragmentação da propriedade cria essa duas figuras, que não veremos em outro instituto que não seja o da enfiteuse.

O enfiteuta se obriga a pagar ao senhorio direto uma pensão anual denominada “foro”, que no caso dos bens públicos da União é equivalente ao percentual de 0,6% sobre o valor atualizado do domínio pleno do imóvel, e nos bens regidos pela legislação civil é certo e invariável, sob pena de desfazimento da relação contratual e consequente retorno do domínio pleno nas mãos do senhorio direto, situação que ainda será abordada.

O artigo 680 do Código Civil de 1916 dispõe que somente podem ser objeto de enfiteuse: terras não cultivadas ou terrenos que se destinem à edificação; disposição diferente da enfiteuse aplicada aos bens públicos, que é regida por uma legislação especial.

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2. Constituição

Inicialmente, torna-se essencial trazer à baila a proibição de constituição de novas enfiteuses e subenfiteuses, a partir do advento do Código Civil de 2002 (enfiteuse civil), que em capítulo próprio será abordada nesta obra, porém, urge esclarecer que tal proibição não atingiu a enfiteuse aplicada aos bens públicos da União (enfiteuse administrativa).

A enfiteuse civil era constituída essencialmente por contrato ou testamento, sendo este último caso, obviamente, inviável ao se tratar de bem público. O contrato de enfiteuse, como todos outros instrumentos que visam à constituição de direitos reais sobre imóveis, não dispondo a lei em contrário, deveria ser feito por escritura pública para que tivesse validade, a não ser que o valor atribuído ao negócio jurídico fosse igual ou inferior a cinquenta mil cruzeiros,1exceção que ensejava a permissão de validar o negócio por instrumento particular. Celebrado o contrato, nascia o direito pessoal – inter partes.

No tocante a não dispor a lei em contrário, no caso da enfiteuse administrativa, o contrato enfitêutico é lavrado em livro próprio da Secretaria do Patrimônio da União

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(SPU), órgão do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.2Como direito real sobre coisa alheia que é a enfiteuse, necessário se faz o registro do contrato enfitêutico no Serviço Registral Imobiliário da circunscrição competente do imóvel, previsto no artigo 167, inciso I, alínea “10”, da LRP, para que efetivamente o domínio seja desmembrado e nasça o direito real que o enfiteuta passa a ter sobre a propriedade do senhorio direto, ganhando, tal ato, a publicidade inerente ao nosso sistema registral – erga omnes. Conforme já esclarecido, não é mais possível a constituição de novas enfiteuses particulares ou até mesmo públicas (quando o ente público não for a União), as quais chamamos de enfiteuse civil, portanto, o registro desse tipo de contrato somente é possível no caso do objeto ser imóvel de propriedade da União.

Não era necessário o registro do testamento para que fosse constituída a enfiteuse, esta era constituída a partir do falecimento do testador (PONTES DE MIRANDA, 2002; GOMES, 1988).

Em relação à subenfiteuse, o enfiteuta podia constituir no prédio emprazado ou somente em parte dele, não havendo qualquer tipo de interferência do senhorio dire-

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to nesse negócio, posto o mesmo ser autônomo. Uma vez constituída, o enfiteuta passava a exercer o papel de senhorio frente ao subenfiteuta, regulando-se o direito entre as partes de igual forma que se dá na enfiteuse.

2.1. Usucapião

Outra forma originária de atribuição do domínio útil é a usucapião. O que se usucapia é o domínio útil, nunca o domínio direto do senhorio. Esse entendimento é respaldo pelos nossos tribunais há décadas. O usucapiente deve figurar no lugar do enfiteuta, com a concorrência de todos os elementos legais da prescrição aquisitiva, possuindo o imóvel com animus domini.

Nesse sentido, passemos a analisar a jurisprudência dos nossos tribunais. A primeira é do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ):

“USUCAPIÃO – BEM PÚBLICO – ENFITÊUTICO – LIMITAÇÃO AO DOMÍNIO ÚTIL. Provada a enfiteuse de bem público, a posse ad usucapionem ficará restrita ao domínio útil. O domínio direto é imune à usucapião. Mas o domínio útil, sendo bem extra comércio, é usucapível (TJRJ – Ac. da Câm. Civ., de 15.2.80 – Ap. Civ. 9.311 – Rel. Des. Newton Doreste Baptista – Caetana Micili Perrota versus Município do Rio de Janeiro; Boletim de Jurisprudência ADCOAS (29): 456, 1981)” (AMORIM, 1986, p. 65).

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A segunda é do Tribunal Regional Federal da 4a Região (TRF4):

“USUCAPIÃO – DOMÍNIO DIRETO E DOMÍNIO ÚTIL – DESMEMBRAMENTO – POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO – ENFITEUSE – ADMISSIBILIDADE – [...] 2. É viável o usucapião do domínio útil de bem que se encontra sob o regime de enfiteuse, permanecendo a União Federal com o domínio direto. [...] (TRF 4a R. – AC 1998.04.01.033185-5 – RS – 4a T. – Rel...

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