Endossos próprios e impróprios, endosso póstumo e circulação imprópria dos títulos de crédito (Código Civil, arts. 919 e 920)

AutorMarcelo Vieira von Adamek
Páginas69-95

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1. Introdução

O vigente Código Civil brasileiro (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002), como já tivemos a oportunidade de enfatizar noutro estudo,1 trouxe para o nosso direito, de maneira inovadora, um corpo próprio de regras sobre títulos de crédito destinado a cumprir essencialmente duas funções bastante específicas: (i) criar uma disciplina geral supletivamente aplicável a todos os títulos de crédito, na ausência de regras especiais nas suas respectivas leis de regência (CC, art. 903); e (ii) permitir que, com base nessa disciplina geral, possam ser criados títulos de crédito atípicos (CC, arts. 887 e 889), para instrumentalizar as novas téc-

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nicas e operações surgidas da prática negociai.2

Neste estudo, procuraremos analisar principalmente os preceitos do Código Civil sobre o endosso-póstumo e a circulação imprópria dos títulos de crédito à ordem (CC, arts. 919 e 920). Contudo, e até mesmo para conferir uma visão mais completa e abrangente dos institutos, não deixaremos de aludir às principais leis sobre títulos de crédito típicos, notadamente a Convenção de Genebra sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias (promulgada pelo Decreto n. 57.663, de 24 de janeiro de 1966) e à Lei do Cheque (Lei n. 7.357, de 2 de setembro de 1985). Além disso, para tornar a exposição mais lógica e compreensível, iremos inicialmente apresentar as distinções entre o endosso próprio e os endossos impróprios.

2. Dos endossos próprios e impróprios

Para compreender a distinção entre endosso próprio e impróprio, é preciso, de início, recordar que a circulação própria ou regular dos títulos de crédito à ordem opera-se por meio da tradição do título com endosso (CC, art. 910, § 2°), pois é desta forma que se dá a transferência do título e da legitimação cartular, investindo o en-dossatário na posição de titular de direitos literais e autónomos. Pela tradição do título endossado, o endossatário não sucede o endossante nos seus direitos cartulares, mas se torna titular de direitos autónomos pelo fato de ter-se tornado proprietário do título.3 Como observou Tullio Ascarelli, "a aquisição do título constitui então o prius e, a do direito, posterius, pois é da propriedade do primeiro que surge autonomamente a titularidade do segundo".4

Por outra retórica, na transferência do título por endosso próprio, regular e tempestivo, não há aquisição derivada de direitos de crédito; o endossatário não é sucessor do endossante nos direitos cartulares.5 O que ocorre é que, com a tradição do título com endosso (que é uma declaração cambiaria, negociai, formal, unilateral, não-receptícia, abstrata e acessória), se transfere o título ao endossatário e, da propriedade do título, resultam ao seu legítimo possuidor os direitos cartulares, autónomos e literais.

O endosso, portanto, difere em muito da cessão de crédito (CC, art. 286), como

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bem explicou João Eunápio Borges: "enquanto a cessão é sempre contrato bilateral, o endosso constitui ato unilateral; a cessão pode revestir qualquer forma, e o endosso é ato formal; a cessão é ato causal, o endosso abstrato. A cessão transfere ao cessionário um direito derivado, o direito do cedente; o endosso não transfere ao endossatário o direito do endossador; transfere-lhe o título, com os direitos nele assegurados a seu legítimo possuidor. O endossatário adquire o direito literal e autónomo resultante do título, completamente imune às exceções que, na pessoa do antecessor, poderiam paralisar a eficácia da promessa nele contida".6

Sucede, todavia, que nem todo endosso se presta a viabilizar a transferência do título. Em certos casos, pretende-se através de endosso apenas legitimar o endossatário a praticar certos atos de cobrança em nome e por conta do endossante, quando então se estará diante de endosso-man-dato (CC, art. 917); e, noutros casos, quer-se apenas instrumentalizar uma garantia sobre o título de crédito, através de endos-so-penhor (CC, art. 918). Nestas duas últimas hipóteses, é evidente que os endossos (= endossos impróprios) têm características bem distintas do endosso pleno ou translativo (= endosso próprio). De todo conveniente, por isso, ressaltar os diferentes efeitos resultantes de uma e outra espécie de endosso.

2. 1 Endosso próprio: efeitos

O endosso, enquanto ato jurídico que é, possui uma causa, isto é, uma função eco-nômico-social. No caso do endosso próprio, pleno ou translativo, a doutrina identifica três funções (ou efeitos) característicos: (i) efetivar a transferenciar do título e, conse-qiientemente, dos direitos dele emergentes (função translativa); (ii) atribuir a legitimação primária do portador do título como credor da prestação (função de legitimação); e (iii) positivar a responsabilidade do endossante pelo cumprimento da prestação constante do título (função de garantia) - embora, a rigor, este último efeito ou função não seja essencial, mas meramente acidental, nó regime do Código Civil, ou natural nas demais leis extravagantes sobre títulos de crédito.

De fato, a função translativa do endosso (Ubertragungsfunktiori), que por muitos é considerada a principal função do endosso pleno,7 explica-se pelo fato de que a aquisição autónoma dos direitos emergentes dos títulos à ordem apenas se viabiliza pela tradição do título com endosso (CC, art. 893; LU, art. 14; e LCh, art. 17). É da tradição do título com o endosso que decorre a titularidade do endossatário sobre o título e os respectivos direitos.8 Neste sentido, diz-se que o endosso realiza a "dinâmica do título de crédito".9

Por outro lado, o endosso se presta ainda a legitimar o exercício dos direitos cartulares pelo portador do título, desde que o seja em virtude de uma cadeia regular e

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ininterrupta de endossos (CC, art. 911; LU, art. 14, ai. Ia; e LCh, arts. 20 e 22). É o que a doutrina denomina de efeito legitimador, ou função de legitimação, do endosso (Legitimationsfunktion).10 Segue-se daí que o portador será legítimo, assim, se justificar o seu direito por uma série ininterrupta de endossos, mesmo que o último seja em branco, e, como tal, tem direito de exigir a prestação (legitimação ativa). Reversa-mente, e ainda como decorrência do efeito de legitimação, o devedor pode efetuar o pagamento com plenos efeitos liberatórios àquele que se apresentar como possuidor do título formalmente legitimado (legitimação passiva).11

Por fim, o último efeito do endosso é o de garantia (Garantiefunktiori), já que, por força do endosso, o endossante se torna responsável, perante o endossatário e sucessivos intervenientes, pela pontual realização da prestação cambiaria. Não se trata, todavia, de um efeito essencial do endosso pleno, visto que, no regime do Código Civil, o endossante não responde pelo cumprimento da prestação constante do título, salvo se tiver assumido esta obrigação por cláusula expressa (CC, art. 914). Aliás, mesmo no regime da Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias e no da Lei do Cheque, trata-se de um efeito natural, mas não.essencial, pois poderá ser afastado pelo endossante através da inserção da cláusula "sem garantia" (LU, art. 15; e LCh, art. 21), verdadeira "cláusula de medo" (Angstklausel12), em virtude da qual não assumirá a obrigação pelo aceite ou pagamento do título (embora, com isso, possa dificultar a circulação do título, deixando nele registradas a sua desconfiança e a incredulidade nas declarações unilaterais até então existentes). De toda forma, porém, a garantia resultante do endosso é apenas, nas palavras de Alfred Hueck e Claus-Wilhelm Canaris, uma "consequência acessória"13 do endosso, que, assim, poderá ou não se fazer presente, dependendo do regime jurídico aplicável ou da vontade do próprio endossante.

Estes, portanto, são as funções típicas do endosso próprio, translativo ou pleno, por meio do qual, aliado à tradição, se transfere a propriedade do título e o portador se legitima ao exercício dos direitos literais e autónomos nele mencionados. Contudo, segundo frisado anteriormente, há endossos em que não se verificam todas esses efeitos e, por isso, são denominados de endossos impróprios.

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2. 2 Endosso impróprio

O endosso nem sempre terá por efeito transferir a propriedade do título. Em muito casos, efetivamente, surge na prática a necessidade de apenas legitimar uma terceira pessoa a exercer certos direitos car-tulares, sem lhe transferir a propriedade do título nem os respectivos direitos. Em casos que tais, poderá o legítimo portador valer-se então de endossos impróprios.14

As características típicas dos endossos impróprios (endosso-mandato e endos-so-caução) consistem em não serem trans-lativos e operarem a simples legitimação contida dos endossatários. Por meio deles, os endossatários ficam legitimados apenas ao...

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