Os contratos empresariais e seu tratamento após o advento do Código Civil de 2002

AutorVera Helena de Melo Franco
Páginas22-46

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1. Antecedentes
1. 1 O Direito anterior

Já tivemos a oportunidade de manifestar em outro trabalho1 que bem antes do advento do Código Civil de 2002, e independentemente da unificação obrigacional, os contratos empresariais (então comerciais) se submetiam aos mesmos princípios estabelecidos para os negócios civis, especialmente com relação ao direito obrigacional.

Com este teor as normas dos arts. 121 e 428 do CComercial, ao disporem: "As regras e disposições do direito civil para os contratos em geral são aplicáveis aos contratos comerciais, com as modificações e restrições estabelecidas neste Código (...)"; "As obrigações comerciais dissolvem-se por todos os meios que o direito civil admite para a extinção e dissolução das obrigações em geral, com as modificações deste Código (...)".

1. 2 A especialização dos princípios e normas gerais perante o direito comercial

Todavia, apesar da existência de princípios e normas comuns, sua aplicação aos contratos comerciais não era linear, adequando-se tais disposições e princípios à especialidade da realidade econômica, substrato dos contratos comerciais, nota-damente porque voltados para o exercício de atividades de produção de bens e serviços a serem ofertados em mercados.

Vale dizer, a sistematização da técnica jurídica para atender à circulação e à transformação de bens que caracterizam esse segmento que, atualmente, denominamos de "relações empresariais".

Lembramos que neste terreno - o das relações comerciais - impôs-se a adequação daqueles princípios às situações de in-termediação, transformação e criação para o mercado, de monopólio, à economia em escala e às novas necessidades geradas pelo tráfico mercantil, com a criação de técnicas negociais e/ou métodos operacionais e econômicos que levaram a novas concepções jurídicas. Mal não faz lembrar, outrossim, que até a noção de "propriedade" no direito comercial tem conotação diferente, posto não se confundir propriedade estática (de fruição) com a propriedade dinâmica dos bens de produção.

E esta realidade, representada pela particular técnica econômica que é o substrato dos contratos comerciais (atualmente empresariais), mantém-se incólume. Equivale dizer: os contratos comerciais (empresariais) subsistem com características próprias que autorizam se distingam daqueles, por definição, civis.

1. 3 A influência do direito comercial sobre o direito civil

Vale aqui um alerta. Como bem esclareceu Rubens Requião, trazido à colação por Paula Forgioni,2 a unificação "não foi determinada pelo direito civil", mas, sim, "conseqüência da crescente influência do direito comercial, provocada pela sua decidida invasão e domínio sobre o direito civil (...)". Vale dizer que na base da unificação obrigacional situam-se princípios já antes acatados no âmbito do direito comercial, tal aquele da boa-fé, ao qual já fazia menção a norma do art. 131,1, do CComercial, ou aquele pertinente à integração dos contratos, abrigado na norma do art. 133 do CComercial.

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1. 4 As relações empresariais e o Código de Defesa do Consumidor

Muito menos a disciplina particular das relações de consumo perturba a realidade representada pelos contratos comerciais (empresariais).

Como já afirmado por um estudioso3 em outra passagem, não pode "ser dada interpretação extensiva ao que é definido como relação de consumo. A fixação do que é efetivamente uma relação de consumo contribui para que o operador do Direito saiba a qual regime legal está sujeito".

Por outro lado, como alerta em seqüência: "O NCC não distingue expressamente as categorias de contratos empresariais, mas pode-se extrair dos dispositivos do NCC que estes terão tratamento diferenciado em decorrência da natureza da atividade exercida pelo empresário e dos princípios basilares do direito comercial. Pode-se destacar como características destes contratos a sua celebração em larga escala, a profissionalidade das partes envolvidas, a utilização de contratos padronizados (entre eles os contratos de adesão) etc.".

Em síntese, do ponto de vista obriga-cional é possível, em princípio, distinguir três rumos paralelos: aqueles dos contratos empresariais, o dos contratos civis e o dos contratos de consumo.

Resta determinar em que medida os princípios gerais contratuais em sua feição atual, tal como acatados no Código Civil de 2002, e os chamados novos princípios (da boa-fé e da função social) afetariam a realidade técnica econômica consubstanciada nos contratos comerciais (empresariais) e até onde esta realidade poderia ser afetada.

A indagação impõe se examine a lógica que norteia a aplicação destes princípios, tal como se apresentam no atual Código Civil.

2. Os princípios da boa-fé e da função social e sua eventual influência sobre os princípios gerais dos contratos
2. 1 Os defensores da constitucionalização do direito privado

Teresa Ancona Lopes,4 entre outros, afirma a despatrimonialização do direito civil, circunstância em que o contrato passaria, sob a influência da Constituição Federal de 1988 (arts. 1o, III, e 3o, I e IV), a ter por núcleo a dignidade da pessoa.

Conforme a tese, os princípios do antigo Código Civil brasileiro adquiriram nova conotação perante o atual Código Civil, com a valoração da eticidade, sociabilidade e operabilidade.5 Isto em decorrên-

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cia da introdução de novos princípios, tais o da boa-fé e o da função social.

Em que medida o eventual novo conteúdo teria afastado a necessária especialização dos contratos empresariais e a realidade técnica, ali consubstanciada?

A resposta impõe o exame destes princípios em sua feição atual, como procedemos em seqüência.

2. 2 Os princípios gerais dos contratos em sua feição atual
2.2. 1 Da autonomia da vontade
2.2.1. 1 Situação antecedente

O princípio básico do direito contratual era a autonomia da vontade, expressa na liberdade de contratar, que se exprimia no acordo de vontades, fundamento de todo o contrato. E esta liberdade de contratar era a razão da obrigatoriedade do contratado. Isto é, a sujeição das partes aos efeitos do contrato decorreria, justamente, do fato de que livremente aceitaram seu conteúdo e, igualmente, as limitações à respectiva vontade.

Daí a necessidade de cumprir a prestação avençada, prometida, a cargo de cada um dos contraentes. Na raiz desta submissão ao pactuado, independentemente da sanção legal atribuída ao inadimplemento, vigorava o princípio da boa-fé na prática dos negócios, a impor o respeito à palavra dada e que se traduzia no princípio mais de ordem moral que jurídica do pacta sunt servanda.6

Em síntese, a vontade das partes, desde que conforme ao ordenamento jurídico, seria suficiente para estabelecer as obrigações dos contraentes, regulando o Direito seus efeitos, conforme a função econômica social característica do tipo escolhido.

O contrato, deste ponto de vista, era o instrumento de composição de interesses conflitantes e aquele por meio do qual se realizava a circulação de bens num mercado onde a livre iniciativa era a regra.

Já, a autonomia privada significava poder de autodeterminação; e o contrato, o meio pelo qual este era exercido.

Em decorrência, a autonomia privada em matéria contratual expressava-se mediante os seguintes dogmas:

• liberdade de contratar, quando julgasse adequado;

• liberdade de escolha do outro contraente;

• liberdade de determinar o conteúdo do contrato;

• a propriedade privada, inviolável e sagrada, era o fundamento dessa liberdade.

O único limite à autonomia privada derivava da ordem pública e dos bons costumes e aqueles traçados pela lei para evitar a ingerência na esfera subjetiva de terceiros. Por tal...

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