A empresa familiar como núcleo de interações entre gestão, propriedade e parentesco

AutorCarlos José Cordeiro/Josiane Araújo Gomes
Páginas329-347

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Ver Nota1

Introdução

A organização de atividades empresárias por pessoas com vínculo de parentesco surgiu como movimento natural da economia brasileira, cujas primeiras unidades produtivas se formaram no setor da agroindústria, a partir de membros de uma mesma família.

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O patriarca, antigamente, cumulava as funções de “cabeça do casal”, “chefe da família” e, consequentemente, “provedor” de todas as necessidades daqueles que se encontravam sob sua tutela. Assim, em busca dos meios indispensáveis para suprir essas demandas, o pai de família percebeu na organização dos meios de produção uma alternativa para garantir a subsistência do núcleo familiar.

Tal fenômeno não se restringiu apenas ao setor primário da economia, mas expandiu-se também para as áreas do comércio e da prestação de serviços, motivo pelo qual a empresa familiar se apresenta como modelo constante da sociedade brasileira atual2.

Apesar de seu relevante papel na economia, somente agora a empresa familiar passou a ser objeto de estudos mais aprofundados por parte dos juristas brasileiros3. Parcas são as obras que analisam detalhadamente o instituto, o qual, sem

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exagero, pode ser erigido à condição de figura autônoma do direito pátrio. Em razão disso, é comum misturar as noções de “empresa familiar” e “família empresária”.

Por outro lado, é comum que as ideias de “sociedade empresária” ou de “empresário individual” sejam equivocadamente identificadas com as denominações acima, sobretudo quando um empresário (pessoa física) atua mediante o concur-so de parentes.

Daí a necessidade de separar conceitualmente cada uma das definições, de modo a tornar possível a construção de uma teoria geral sobre as empresas familiares. Esta será capaz de fornecer as ferramentas jurídicas, gerenciais e, até mesmo, psicológicas, imprescindíveis à organização sistêmica do complexo empresarial de natureza familiar4.

Advirta-se, entretanto, que este estudo não se propõe a construir uma teoria geral fundada imprescindivelmente em saberes transdisciplinares, mas pretende apenas inserir pequena pedra na imensa parede deste campo do conhecimento. Logo, delimita-se como principal objetivo deste texto tão somente o discernimento acerca das múltiplas definições utilizadas no estudo da empresa familiar.

1 Noções gerais
1. 1 Delimitação conceitual de empresa familiar e de família empresária

A ideia central deste trabalho é a origem das famílias empresárias como consequência lógica da empresa familiar. Mas advirta-se, preliminarmente, que nenhum desses conceitos pode ser identificado como ente personificado pelo ordenamento jurídico pátrio.

Com efeito, no direito brasileiro, detém personalidade – no sentido de titularizar direitos e deveres próprios – somente a pessoa física ou a pessoa jurídica. De

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outro lado, empresa significa atividade profissionalmente organizada para produção ou circulação de bens ou serviços.

Adjetivar uma empresa como familiar significa que ela tem como base estrutural o trabalho de diversas pessoas físicas ligadas por vínculo de parentesco. Entretanto, o empresário é a pessoa em nome da qual são adquiridos os direitos e assumidos os deveres necessários ao exercício do negócio.

Portanto, é possível que uma empresa familiar se forme em torno de um empresário individual. Isso quando um dos parentes for a pessoa que, em seu próprio nome, pratica os atos jurídicos empresariais, arcando com os correspondentes riscos e benefícios5. Mas a empresa de caráter familiar também pode decorrer da constituição de sociedade empresária, cujos titulares das participações do capital social (quotas ou ações) são membros de uma mesma família. Neste caso, a responsabilidade pelos atos empresariais recairá sobre a pessoa jurídica criada por registro de seu estatuto ou contrato na Junta Comercial.

Uma vez esclarecida a inexistência de personalidade jurídica por parte da empresa familiar, opta-se por compreendê-la como aquela em que as condições estruturais de propriedade e de gestão são consideravelmente influenciadas por questões concernentes ao parentesco entre seus colaboradores6.

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Nota-se, então, que o princípio da empresa familiar está relacionado com a mobilização de mão de obra produtiva por parte de parentes7. Entretanto, a gênese da empresa familiar também pode ser vista como ponto de partida em direção à constituição de uma família empresária, nos casos em que o empreendimento obtém sucesso.

Quando o empreendimento alcança êxito, é natural que os vários familiares deixem de engendrar funções técnicas intimamente ligadas à prática ou ao desenvolvimento direto do negócio e, então, passem a deter: a) posições de gestão
(p. ex., diretoria ou conselho de administração) ou; b) propriedade de participações sobre o capital social (sócios quotistas ou acionistas); c) as duas condições anteriores, simultaneamente.

É neste momento que a família se torna empresária, conceito não exclusivamente jurídico. A expressão “família empresária” assume conotação técnica transdisciplinar e se aplica tanto ao Direito, como à Administração de Empresas, à Economia e até mesmo a campos do saber cujo objeto não se relaciona a bens materiais, como é o caso da Psicologia.

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Porém, para que uma família empresária prolongue-se no tempo e se estenda por mais de uma única geração, faz-se mister a busca contínua pela prosperidade duradoura, geralmente baseada na “aspiração máxima de garantir o sustento e de prover conforto a todos os membros da família empresária, geração após geração”8.

Daí porque “família empresária” não pode ser confundida com “família dona dos negócios”, pois ela não é mera detentora da propriedade dos meios de produção. Família empresária é aquela que assume a postura destinada a atender, concomitantemente, as exigências do bom desempenho dos poderes de: a) sócios acionistas ou quotistas, com os direitos e deveres a ele inerentes; b) administradores do negócio, mediante gestão eficiente dos diversos elementos sistematicamente condicionados para realização do objeto da empresa.9Desta definição, depreende-se que a família empresária não possui direitos e deveres próprios, pois não constitui ente com personalidade jurídica autônoma. Além disso, o predicado “empresária” jamais poderá ser tomado em sua rigorosa acepção jurídica. Sendo empresário o sujeito que organiza profissionalmente uma atividade econômica, somente uma pessoa física ou jurídica poderá sê-lo, mas nunca a entidade familiar10.

Uma vez distinguidos os conceitos de empresa familiar e família empresária, há características atribuíveis a ambas as realidades. Convém, então, detalhá-las.

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1. 2 Principais Características

A empresa familiar – contexto do qual se desenvolve a família empresária – deve ser compreendida como macrossistema11decorrente da coordenação entre diversos elementos de dois subsistemas: empresa e família. Nela se interrelacionam sentimentos, normas jurídicas, planos de negócios, relações trabalhistas etc. Desse pressuposto lógico derivam todas as demais peculiaridades, tanto das empresas familiares, quanto das famílias empresárias.

1.2. 1 Realidade transdisciplinar

Primeiramente, tem-se que uma metodologia unidisciplinar ou mesmo interdisciplinar não é suficiente para compreensão do fenômeno, haja vista a indispensável abordagem transdisciplinar exigida para sua análise. Transdisciplinar porque importa na reunião de conhecimentos provenientes de diversos ramos da Ciência para tornar possível a apreensão totalizante de uma mesma estrutura sistêmica12.

Deste modo, a complexidade das relações estabelecidas entre as diversas pessoas responsáveis pelo funcionamento de uma empresa familiar requer noções provenientes de múltiplas áreas do saber (p. ex., Administração de Empresas, Direito, Economia, Psicologia etc).

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1.2. 2 Confluência de diferentes interesses

Interesse constitui vocábulo plurívoco13, podendo assumir as mais diversas naturezas. Por isso, comparece à terminologia de inúmeros ramos do conhecimento, podendo apresentar-se sob o enfoque econômico, situação em que ostenta o sentido de lucro, renda, ganho ou qualquer outra sorte de benefício de natureza pecuniária.

Os psicólogos também adotam definição própria de interesse, cuja relevância chega a fazer com que Edouard Claparède o considere “pedra sobre a qual pode ser edificada toda a psicologia – se um tal edifício é possível14”. Esclarece o autor que alguma coisa tem interesse quando nos importa “no momento em que a consideramos ou quando corresponde a uma necessidade física ou intelectual”. Nessa ordem de ideias, “o termo ‘interesse’ exprime, pois, uma relação adequada, uma relação de conveniência recíproca entre o sujeito e o objeto”15.

Sob o viés jurídico, interesse exprime uma “aspiração legítima, de ordem pecuniária ou moral que representa para uma pessoa a existência de uma situação jurídica ou a realização de uma determinada conduta”16. Neste caso, é necessário

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que o objetivo perseguido pelo titular do interesse seja amparado pelo ordenamento jurídico, tendo por fundamento seus princípios ou suas regras17.

Por último, no campo da Sociologia, interesse também pode ser apreendido segundo sua acepção política, indicando o interesse dos diferentes grupos que participam das decisões a serem tomadas por um mesmo ente (Estado, empresa etc.).

Importante frisar que, no seio das empresas familiares ou das...

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