A empreitada de imóveis decorrente da compra e venda de consumo

AutorMarisa Dinis
CargoDoutora em Direito (Universidade de Salamanca)
Páginas127-149

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EXCERTOS

"Uma das principais preocupações jurídicas inerente ao contrato de compra e venda em geral e ao contrato de compra e venda de consumo em particular reside no regime aplicável à venda de coisas defeituosas"

"No caso de a empreitada ter por objeto a construção, a reparação, a modificação de bens imóveis, destinados, pela sua natureza, a longa duração, assistirá ao dono da obra, ou a terceiro adquirente, o direito à eliminação dos defeitos ou à reconstrução da obra"

"Efetivamente, na eventualidade de o empreiteiro entender que o defeito não pode ser eliminado, bastar-lhe-á alegar que a solução elegida não é, por exemplo, tecnicamente possível de concretizar"

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I. DO contrato de empreitada - considerações gerais n os termos da redação do artigo 1207º do código civil, "empreitada é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço". Como é sabido, apesar de o contrato de empreitada estar regulado de forma autónoma, ele constitui, na verdade, uma das modalidades de prestação de serviços (artigo 1154º do código civil), a qual apresenta, no entanto, especificidades muito próprias no que respeita ao objeto. Recorde-se, neste aspecto, ainda antes de delimitarmos o âmbito da análise do nosso estudo que, como antecipámos no respectivo título, incidirá sobre a empreitada de bens imóveis no âmbito do direito privado1, que podem ser vários os objetos do contrato de empreitada, entre bens imóveis e móveis, desde que sobre ele se venha a verificar um resultado material - obra - que pode traduzir-se numa construção, numa reparação, numa modificação ou inclusivamente numa demolição2. De fato, a palavra "obra" tem sido, neste particular e no ordenamento jurídico nacional3, uma rentável fonte de controvérsia doutrinal e jurisprudencial cujo marco central remonta à conhecida querela entre FERRER correia e henrique mesquita, por um lado, e ANTUNES varela e JOÃO calvão da SILVA, por outro, na sequência das anotações que fizeram ao acórdão do STJ de 3 de novembro de 19834. Resumidamente, os primeiros, na defesa de um conceito amplo da palavra "obra", defenderam que poderia englobar um resultado intelectual, contrariamente aos segundos que, na defesa de um conceito restrito da mesma palavra, entenderam que o contrato de empreitada se traduzia numa obrigação de resultado que incidiria em objetos de natureza corpórea.

PESem embora as considerações sobreditas, resulta claro que é requisito essencial do contrato de empreitada é a realização de uma obra que se traduzirá num resultado material. Não se trata, portanto, de uma prestação do trabalho com o consequente vinculo de subordinação que, in casu, seria naturalmente do empreiteiro para com o dono da obra, agindo, assim, este sob sua própria direção e não sob os comandos do dono da obra, sendo certo, porém, que sempre caberá ao dono da obra um poder de fiscalização5. Veja-se, concomitantemente, o que refere

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o artigo 1209º do código civil de onde decorre expressamente que o objetivo central deste poder de fiscalização reside em evitar que o empreiteiro encubra defeitos da obra que podem não ser, ao momento da entrega, de fácil apreensão pelo dono da obra. PRETENDE-se evitar, igualmente, com este direito de fiscalização, defeitos na obra que conduzam ou possam conduzir, a posteriori, à não aceitação da obra. Trata-se de um direito que se traduz na verificação da execução da obra e não na possibilidade de dar instruções ou exercer o poder de direção característicos do contrato de trabalho e poderá o dono da obra, se assim o entender, delegar num terceiro, por exemplo, num arquiteto ou num engenheiro, este direito de fiscalização, a quem confiará a totalidade ou parte do mesmo. As condições para o exercício deste direito são óbvias e resultam, desde logo, do n. 1 deste artigo 1209º do código civil, que declara que as despesas decorrentes da fiscalização ficam a cargo do dono da obra e que esta fiscalização não pode perturbar a boa e normal execução da obra. ATENTESE, igualmente, no mencionado no n. 2 do mesmo artigo, que expressa claramente que a fiscalização não impede o dono da obra de exercer, contra o empreiteiro, os seus direitos, "embora sejam aparentes os vícios da coisa ou notória a má execução do contrato, excepto se tiver havido da sua parte concordância expressa com a obra executada". Trata-se de um direito que não pode ser afastado nem por vontade unânime dos contraentes6.

A empreitada consubstancia, como se disse, uma prestação de serviços autonomamente regulada e, portanto, não se confunde juridicamente com o contrato de compra e venda. Com efeito, enquanto naquela nasce uma obrigação da prestação de fato que se traduz na realização da obra, nesta dá-se a transferência da propriedade da coisa ou do direito objeto do contrato.

Todavia, sempre que os materiais são fornecidos pelo empreiteiro, e sobretudo quando o valor destes é superior ao valor do trabalho, as

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dúvidas a respeito da qualificação jurídica do contrato agudizam-se. Sem aprofundarmos em demasia a questão, sempre diremos que, da leitura dos artigos 1210º e 1212º, ambos do código civil, o condicionalismo de os materiais serem ministrados pelo empreiteiro não determina a alteração da qualificação jurídica do contrato, continuando este, em princípio, a colher a qualificação de contrato de empreitada. Note-se, neste sentido, o referido no artigo 1212º do código civil a respeito da propriedade da obra e da transferência da propriedade dos materiais fornecidos pelo empreiteiro. Daqui denota-se, uma diferença de tratamento jurídico entre este contrato e aquele outro, o de compra e venda.

Na doutrina e na jurisprudência têm sido discutidas as semelhanças e as dissemelhanças entre ambos os contratos em diversas frentes, mas perece-nos que, independentemente da designação atribuída pelas partes ao contrato, há que atender em concreto às reais cirscunstâncias em que ele se materializa e há que chamar à colação as regras que melhor podem dirimir os conflitos jurídicos daí advenientes, mesmo que tais regras sejam do regime jurídico da compra e venda7.

II DO âmbito de aplicação do contrato de compra e VENDA para consumo

Nos termos do disposto no artigo 874º do código civil designa-se de compra e venda o contrato "pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço".

Subtipo do contrato de compra e venda é, como é sabido, o contrato de compra e venda para consumo. Este contrato distinguese do primeiro pelas características que reveste e pelo regime jurídico que lhe é aplicável. Na verdade, para além das regras gerais do código civil, a regulação dos contratos de compra e venda de consumo está sob a alçada de uma série de diplomas que visam a real proteção dos consumidores, atendendo à manifesta falta de equilíbrio das partes num contrato desta natureza.

Assim, nestes contratos há que evocar, sempre que aplicáveis, os regimes dos contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial (decreto-lei 47/2014, de 28 de julho), das práticas comerciais desleais (decreto-lei 57/2008, de 26 de março, alterado pelo

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Decreto-lei 205/2015, de 23 de setembro), o do decreto-lei 67/2003, de 8 de abril, que procedeu à transposição para o direito interno da diretiva 1999/44/ce, do PARLAMENTO europeu e do conselho, de 25 de maio, relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas e que foi alterado em 2008, por via do decretolei 84/2008, de 21 de maio.

Ora, o último diploma referido, e o que procedeu à sua alteração, reveste elevada importância no âmbito das relações do consumo, sendo, na verdade, considerado um dos diplomas-rei nesta área específica do direito. Neste diploma encontram-se enumeradas as consequências jurídicas para a entrega de um bem em desconformidade com os dizeres do contrato.

Vejamos, antes de avançar no estudo deste diploma, qual o âmbito de aplicação que abarca. Como decorre deste introito, o diploma será de aplicar aos contratos de compra e venda de bens de consumo. Com efeito, é precisamente isto que afirma o respectivo artigo 1º ao referir que ele "é aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores" o que, aliás, decorre diretamente da diretiva que veio transpor. SALIENTE-se, porém, que este diploma não se aplica em exclusivo às relações de consumo, sendo igualmente chamado a atuar, com as devidas adaptações, quando em causa estão contratos mediante os quais um contraente público compra bens móveis a um fornecedor, nos termos previstos pelo código dos contratos PÚBLICOS8.

Como já mencionámos, o decreto-lei 67/2003 procedeu à transposição da diretiva 1999/44/ce, do PARLAMENTO europeu e do conselho, de 25 de maio, mas o âmbito de aplicação que consagrou foi maior do que o âmbito de aplicação definido pela citada diretiva. De fato, para efeitos de aplicação da predita diretiva, define a al. B) do n. 2 do artigo 1º "bem de consumo" como "qualquer bem móvel corpóreo". Diferentemente, dispõe a al. B) do artigo 1.-b do decreto-lei 67/2003 que "bem de consumo" é entendido, para efeitos de aplicação do próprio diploma, como "qualquer bem móvel ou imóvel corpóreo, incluindo os bens em segunda mão"9. Veja-se que, apesar de o artigo 1.-b ter sido aditado em 2008, por mão do decreto-lei 84/2008, de 24 de maio, o âmbito de aplicação do diploma já alcançava bens móveis e bens imóveis, nos termos dos artigos 4º e 12º da lei de defesa do

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Consumidor, na redação anterior à dada pelo decreto-lei 67/2003, de 8 de abril10.

Entre o teor da diretiva e o plasmado no decreto-lei 67/2003 avista-se, ainda, outra diferença significativa que influencia diretamente os respectivos âmbitos de aplicação. Assim...

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