Discriminação nas Relações de Trabalho e Emprego: Reflexões sobre o Diálogo das Fontes Nacionais e Internacionais

AutorDaniela Muradas Reis
Páginas398-407

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1. Trabalho, discriminação e sociedade: a unidade do coletivo e ocultação da diversidade

A edificação do Direito do Trabalho foi propulsionada pela força do reconhecimento de uma identidade coletiva obreira, que propiciou ações concertadas no âmbito da sociedade civil, reequilibrando a assimetria na relação entre capital e trabalho, bem como estabeleceu na sociedade política uma agenda de reconhecimento de direitos, em generalização das garantias setorialmente alcançadas.

Na lição de Mauricio Godinho Delgado:

A origem peculiar desse ramo jurídico especializado é fundamental no processo de caracterização do padrão normativo do Direito do Trabalho nos países desenvolvidos ocidentais. É que a circunstância de surgir o Direito do Trabalho de um processo de luta, organização e representação de interesses do conjunto da classe trabalhadora, ou pelo menos de seus segmentos mais avançados, fez com que esse novo ramo jurídico incorporasse, em seu interior nuclear, as dinâmicas próprias à atuação coletiva. A posterior assimilação pelo Direito do Trabalho das inevitáveis estratégias de resposta e contraposição estatal à ação obreira não teria o condão de suprimir ou romper a legitimidade política e força jurígena (criadora do direito) dessa dinâmica democrática original.1

Se de um lado a construção da identidade, pertença e participação política por intermédio do trabalho supõe a universalidade, a unidade da diversidade; de outro lado2,

"O interesse por revelar a unidade do coletivo e a violência instituída pelas relações sociais de produção capitalista correspondentes afirmou noções e conceitos que tanto ocultavam a pluralidade de identidades e de subjetividades entre os trabalhadores quanto geravam indiferença para outros tipos de relações sociais não diretamente vinculadas à sobrevivência material da espécie, mas também fundadas na violência."3

Trata-se aqui de reconhecer, tal qual decantado por Touraine, que sujeitos, para além do trabalho, podem ter pluralidade identitária (gênero, raça, origem social etc.) e, em razão disto, lutarem pelo reconhecimento social4.

O surgimento de novos movimentos sociais, em especial nos anos sessenta e setenta, como manifestações espontâneas da sociedade contemplando programas de ação para fins transformadores da realidade política (feminismo, movimentos de igualdade racial, movimentos dos despossuídos), atesta historicamente a construção de outros paradigmas de identidade ou identificação. Ao termo de todo este processo, o que se busca é superar a subjugação, restaurando o reconhecimento recíproco. Trata-se de reconhecer que o triunfo da cidadania como categoria universal é abstrato e formal, a reclamar a introjeção de elementos particulares, em respeito às diferenças de uma sociedade sabidamente plural. Isso amplia significativamente o espectro de alcance da justiça social, que não se cinge mais ao mero problema da equânime participação na riqueza social5.

Considerando a emergência destas múltiplas identidades, não se pode mais supor uma homogeneidade do trabalho.

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Como contradição inerente à sociedade, e em particular à sociedade do trabalho, o tratamento diferenciado em razão de fato ignóbil tem sido utilizado como estratégia de dominação de grupos ou de pessoas, com manutenção da superioridade de uma determinada raça, gênero, condição sexual, origem social, entre outros fatores em detrimento dos demais partícipes da sociedade do trabalho. Não é demais lembrar que as pesquisas demonstram desnível remuneratório e na ocupação de funções mais qualificadas considerando posição sexista e racista6. Para evitar restrição ao mercado de trabalho ou tratamento diferenciado no emprego, é relativamente comum a estratégia de velar a condição sexual; ao contrário, a ostentação da condição sexual condena transgêneres, transexuais, travestis e transformistas, por exemplo, a guetos no mercado de trabalho. Os obstáculos arquitetônicos são, em grande medida, limitadores do acesso ao emprego para pessoas com deficiência.

Além do problema da segregação social, a discriminação pode gerar situações de vulnerabilidade social7, com inclusão no mercado de trabalho em caráter precário de certos grupos ou pessoas:

Dentre os vários enfoques dados ao termo vulnerabilidade social, observa-se um razoável consenso em torno a uma questão fundamental: a qualidade do termo deve-se a sua capacidade de captar situações intermediárias de risco localizadas entre situações extremas de inclusão e exclusão, dando um sentido dinâmico para o estudo das desigualdades, a partir da identificação de zonas de vulnerabilidades que envolvem desde os setores que buscam uma melhor posição social, até os setores médios que lutam para manter seu padrão de inserção e bem estar, ameaçados pela tendência a precarização do mercado de trabalho. Tudo isso em confronto com a estrutura de oportunidades existentes em cada país em um dado momento histórico. Também a partir da delimitação crítica em relação ao termo exclusão, as discussões sobre o mercado de trabalho, segundo alguns estudos, teriam encontrado na definição de vulnerabilidade um maior poder explicativo, frente a um quadro cada vez mais complexo, dada a heterogeneidade das situações de precarização existentes. O conceito de vulnerabilidade, pela sua capacidade de apreensão da dinâmica dos fenômenos, tem sido, na opinião de muitos autores, apropriado para descrever melhor as situações observadas em países pobres e em desenvolvimento, como os da América Latina, que não podem ser resumidas na dicotomia, pobres e ricos, incluídos e excluídos.8

Cabe ressaltar que atividades sujeitas a regulamentações jurídicas mais precárias são francamente relegadas ao gênero feminino, tais como os serviços domésticos. Também nota-se uma feminização no campo do trabalho terceirizado, especialmente quanto ao trabalho de limpeza e conservação, e mais recentemente nas atividades de telemarketing, de baixo padrão remuneratório, grande disciplina no trabalho e tendente a ser ofertada por empresa interposta9.

Particularmente no Brasil, o tema da discriminação comporta fortes doses de invisibilidade. O mito de brasilidade, e em especial de uma conaturalidade para a cordialidade, forjado nos círculos acadêmicos10 e massificado pela cultura popular, traz consigo, como bem denuncia Jessé Souza, a "suposta ausência de preconceito e predisposição e abertura para todas as possibilidades de encontro cultural e humano"11.

O motivo básico para isso é a extraordinária cegueira que esse mito nacional representa, hoje em dia, para uma adequada compreensão de nossos desafios e problemas atuais. Boa parte dessa opacidade já está prefigurada na forma como Freyre constrói sua "invenção do Brasil". Ora, o que Freyre realiza é o que poderíamos chamar de uma "inversão espetacular", ou seja, ele inverte o problema da identificação nacional ao inverter os termos que o compunham. Se o componente racial - povo mestiço - era o aspecto problemático e negativo até 1933, Freyre simplesmente o inverte: agora é precisamente o componente racial que nos singulariza positivamente! Mas os termos da equação - observem - continuam os mesmos. A "raça" ainda que ligada a uma cultura específica, é o ponto que permanece, seja na versão negativa, seja na versão positiva de nossa identidade12.

Do mesmo modo a arqueologia cultural brasileira, mesmo em leituras críticas como, por exemplo, em Holanda, explicaria no patriarcado a preferência do homem à mulher, bem como a cultura de privilégios para determinados grupos, não por um critério objetivamente meritório, mas por uma preferência puramente subjetiva e emocional.

Para além do campo teórico, a massificação cultural do exotismo, sensualidade e exultação estabelecem um universo de pré-compreensão de tolerância e complacência com tratamentos disformes.

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Entretanto, como assevera Marcelo Cattoni:

Não se pode mais pensar em todo esse "patrimônio cultural" e suas origens - não tanto "a fadiga dos grandes gênios que o criaram, mas antes a escravidão sem nome de seus contemporâneos" - "sem sentir horror": "Não existe documento da cultura sem que seja, ao mesmo tempo, documento da barbárie" (...). Longe de assumir a mera perspectiva piedosa ou de compaixão em prol das vítimas e dos oprimidos idealizados, típica de uma retórica fácil e ruim, do chamado "politicamente correto" (...), o que está em questão é o difícil e insaturável caminho da construção pública da justiça como possibilidade de toda desconstrução (...). É, portanto, chegada a hora, e a hora do presente é a do juízo, de seguir a recomendação de Benjamin e assumir como nossa a tarefa de "escovar a contrapelo a história".13

A ruptura da maldita herança cultural é, portanto, um desafio da sociedade política brasileira, a partir de reconstrução de um projeto político e jurídico nacional, engendrando elementos de diferenciação qualificada, com promoção de reais fórmulas de superação das desigualdades sociais, decorrentes da "naturalização" do racismo, sexismo, personalismo e outras práticas injustificáveis.

Em outros termos:

O combate à discriminação é uma das mais importantes áreas de avanço do direito característico das modernas democracias ocidentais. Afinal, a sociedade democrática distingue-se por ser uma sociedade suscetível a processos de inclusão social, em...

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