Embargos de Terceiro

AutorManoel Antonio Teixeira Filho
Ocupação do AutorAdvogado. Juiz aposentado do TRT da 9.ª Região
Páginas518-533

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1. Conceito

O objetivo da execução por quantia certa reside na expropriação forçada de bens do devedor, como medida tendente a satisfazer o direito do credor, subsumido na sentença condenatória, a que o fenômeno jurídico da coisa julgada material adjungiu a eficácia de título executivo (CPC, art. 824). Por esse motivo — e como tantas vezes grifamos neste livro — o devedor responde, legalmente, para o cumprimento de suas obrigações, com a integralidade de seu patrimônio, já constituído ou a constituir (CPC, art. 789).

Pode ocorrer, entretanto, que, na tarefa de tornar concretos os fins da execução, o órgão jurisdicional venha a apreender (mediante penhora, arresto, sequestro, depósito etc.) bens pertencentes a terceiro, vale dizer, a quem não está obrigado a adimplir a obrigação derivante do título exequendo. Torna-se, pois, de grande interesse — não apenas do ponto de vista doutrinário mas também prático — que investiguemos, a seguir, o conceito jurídico de terceiro e procuremos definir os seus exatos contornos.

A muitos poderia parecer suficiente dizer, em grau de definição, que terceiro é todo aquele que não é parte na relação processual executiva. Semelhante conceito seria, contudo, algo simplório, na medida em que, conforme iremos demonstrar, mesmo sendo parte no processo de execução o indivíduo está autorizado, por lei, a praticar aí atos na qualidade de terceiro.

Basta ver que o diploma processual civil vigente equipara a terceiro a parte que, a despeito de estar figurando no polo passivo da relação processual executiva, deseja promover a defesa de bens que, pelo título de aquisição ou pela qualidade em que os possui, não podem ser alcançados pelo ato de apresamento judicial (CPC, art. 674, § 2.º). Mesmo no processo do trabalho, o devedor pode, e. g., oferecer embargos de terceiro sempre que houver necessidade de colocar a salvo da execução determinados bens que possui na qualidade de locatário, arrendatário e o mais. Mesmo o cônjuge é considerado pela norma legal como terceiro toda vez que pretender defender a posse de bens dotais, próprios, reservados ou de sua meação (CPC, art. 674, § 2.º, I). Por aí se percebe a inconsistência jurídica do conceito segundo o qual deve ser havido como terceiro todo aquele que não integra a relação jurídica executiva.

Como ensina Liebman, para efeito de determinar se uma pessoa é, ou não, parte no processo, não é suficiente levar-se em conta a sua identidade física, devendo-se, ao contrário, considerar também a qualidade jurídica em que compareceu ao processo, concluindo que “Uma pessoa física pode ser simultaneamente parte e terceiro com relação a determinado

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processo, se são diferentes títulos jurídicos que justificam esse duplo papel que ela pretende representar, se são distintas as posições jurídicas que ela visa a defender” (Revista Forense, vol. CIX, p. 46).

Frederico Marques afirma que se deve entender como terceiro não a pessoa física ou jurídica que não tenha participado do processo, e sim “a pessoa titular de um direito outro que não tenha sido atingido pela decisão judicial” (obra cit., vol. V, p. 455).

Terceiro é, portanto, a pessoa que, sendo ou não parte no processo de execução, defende bens que, em decorrência do título aquisitivo ou da qualidade em que os possui, não podem ser objeto de apreensão judicial. O amor à clareza nos conduz a reafirmar que a configuração jurídica do terceiro não deve ser buscada no fato imperfeito de estar o indivíduo fora da relação processual executiva, e sim na particularidade fundamental de que, embora esteja eventualmente figurando como parte passiva nessa relação, colime praticar aí atos destinados não a opor-se ao título executivo, se não que a liberar bens de indevida constrição judicial — fazendo-o, nesse caso, com fundamento no título de aquisição ou na qualidade pela qual detém a posse de mencionados bens.

Importante regra de ordem prática se extrai dessa observação: se o terceiro desejar defender os seus bens, cuja posse tenha sido turbada ou esbulhada por ato judicial executivo, deverá valer-se dos embargos que lhe são próprios e imanentes (de terceiro); caso se valha de embargos à execução (ou do devedor), será declarado carecente da ação, por faltar-lhe, para tanto, a indispensável legitimidade.

É despiciendo, por outro lado, que o terceiro seja senhor e possuidor, ou somente possuidor dos bens apreendidos: em ambos os casos ele recebe, da norma legal, a necessária legitimidade para tencionar excluí-los da constrição judicial (CPC, art. 674, § 1.º).

Já os embargos, que o ordenamento processual lhe põe ao alcance, com vistas a esse desiderato, constituem ação de tipo especial e de caráter incidental, que se encontra submetida a procedimento sumário. O traço de incidentalidade desses embargos está em que não se quadra ao seu escopo teleológico o desfazimento da execução forçada, mas, apenas, o de afastar a turbação ou o esbulho quanto à posse dos bens, proveniente de ato judicial como a penhora, o arresto, o sequestro, o depósito etc. Deles disse Pontes de Miranda: “são ação do terceiro, que pretende ter direito ao domínio ou outro direito, inclusive a posse, sobre os bens penhorados ou por outro modo constritos” (obra cit., vol. IX, p. 6). Paula Batista, por sua vez, vê nesses embargos uma “ação de intervenção”, por meio da qual o terceiro exerce a defesa de seus bens contra execuções alheias” (apud BARROS, Hamilton de Moraes e, obra cit., p. 289).

2. Natureza jurídica e eficácia

No texto das Ordenações Filipinas, os embargos de terceiro apareciam como um incidente da execução (Livro 3.º, Título 86, § 17); o primeiro Código de Processo Civil unitário do País (1939) alargou o campo de aplicação desses embargos, permitindo a sua utilização não só em face de execuções judiciais, mas de outros processos, considerando-os, dessa forma, como integrantes da classe dos denominados processos acessórios. O art. 707

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desse Código concedia a ação de embargos em exame não apenas aos que detinham a titularidade da posse, mas igualmente aos que eram titulares de direitos; como o legislador não precisou qual a espécie de lesão a direito que autorizava o manejo desses embargos, passou-se a entender que a sua utilização seria ampla, não mais circunscrita, portanto, à defesa da posse.

O art. 1.046 do estatuto processual civil de 1973 revelava, a nosso ver, a natureza possessória desses embargos, embora o § 1.º dessa norma, ao fazer expressa referência ao senhor (e não só ao possuidor) da coisa, permita concluir ser possível discutir-se, em sede desses embargos, questões relativas ao domínio do bem constrito. Acreditamos que isso somente será possível se o embargante for, além de senhor, possuidor da coisa — conquanto a simples posse seja suficiente para conceder-lhe legitimidade, com vistas ao uso desses embargos.

O CPC de 2015, por seu art. 674, também demonstra que esses embargos possuem traço possessório.

A afirmação de que os embargos de terceiro possuem natureza possessória não seria infirmada pelo fato de o CPC atual haver dedicado, no Título referente aos procedimentos especiais, o Capítulo III, dispondo sobre as ações possessórias (arts. 554 a 567), não incluindo aí os embargos de que estamos a nos ocupar? Pensamos que não. O que se deve investigar, para efeito de cabimento de embargos de terceiro ou das ações possessórias mencionadas nos arts. 554 a 567 do CPC, é a origem do ato que está a molestar a posse do indivíduo. Assim, se a turbação ou o esbulho decorrem de ato praticado por particular, ou pelo próprio Estado (sem que o faça no exercício da jurisdição), deverá o interessado (possuidor) valer-se das ações possessórias típicas; se, ao contrário, a moléstia à posse promanar de ato da jurisdição, cabíveis serão os embargos de terceiro e não as possessórias de manutenção, reintegração ou interdita.

Percebe-se, pois, que os embargos de terceiro se destinam à defesa da posse ameaçada, turbada ou esbulhada por ato judicial; essa particularidade justifica a sua existência, no Código atual, ao lado das ações possessórias de interdito, manutenção e reintegração de posse, dada a dessemelhança teleológica que há entre uma e outras.

Nos embargos de terceiro, aliás — e contrariamente ao que se passa no plano das ações possessórias típicas —, não se concede ao possuidor o direito de realizar o desforço físico em defesa da posse.

Não se confundem os embargos de terceiro com a oposição. Em primeiro lugar, enquanto o terceiro deseja, com seus embargos, promover a defesa da posse — e eventualmente da propriedade do bem —, o opoente intervém na causa para pretender, para si, a coisa ou o direito sobre que controvertem o autor e o réu (CPC, art. 682); em segundo, os embargos de terceiro pressupõem, sempre, um ato de apreensão judicial do bem (penhora, arresto, sequestro, depósito, etc.), sendo que a oposição se caracteriza pela mesma disputa, estabelecida entre as partes, acerca de determinado bem ou direito, em cuja lide o opoente intervém; em terceiro, os embargos instauram uma nova relação jurídica processual, tendo, pois, vida própria, e sendo julgados por sentença específica, enquanto, na oposição, o

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terceiro se mete de permeio na mesma relação jurídica processual estabelecida entre autor e réu, sendo as suas pretensões apreciadas juntamente com as das partes originárias.

Tomados por outro ângulo, os embargos de terceiro apresentam preponderante carga de constitutividade, porquanto visam a desconstituir o ato da jurisdição que está molestando a posse do legitimado, fazendo com que a situação retorne ao estado como se encontrava anteriormente à apreensão judicial.

3. Pressupostos

Os pressupostos objetivos dos embargos em...

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