Em vez de si mesmo

AutorPierre Legrand
Páginas27-100
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I
EM VEZ DE SI
MESMO
Interessar-se por um Direito estrangeiro,
portanto por um Direito diverso do “seu” (como se
o Direito pertencesse a alguém...), é, para o jurista
brasileiro, antes de tudo, sair do território brasileiro.
É também abandonar o ambiente do pensamento
jurídico brasileiro, tal como este foi organizado para
ele, por exemplo, na universidade brasileira onde ele
se formou em Direito. Assim, o estudo do Direito da
Inglaterra lhe permite notar que é possível construir
um Direito sem Código Civil e que, portanto, a
presença desse instrumento na caixa de ferramentas
da regulação jurídica não é, de forma alguma,
necessária. Mas significa dizer que os ingleses são
incapazes de codificar seu Direito? Essa ausência de
Código Civil significa que o Direito inglês é primitivo?
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PIERRE LEGRAND
Não e não. Os ingleses conhecem bem os sistemas
jurídicos nos quais prevalecem os Códigos Civis. Eles
sabem que nesses países, como é o caso do Brasil,
eminentes juristas se declaram satisfeitos com seus
Códigos e não veem razão para se separarem deles. E
os ingleses possuem – é preciso esclarecer isso? – as
capacidades intelectuais necessárias para sistematizar
seu Direito sob a forma de Código. A justificativa do
modelo inglês, desse modo, deve ser buscada em outro
lugar.
Por razões que se enquadram no que pode ser
chamado de “mentalidade”, constata-se que os ingle-
ses consideram que um Código Civil não é compa-
tível com a justiça. Aqui está uma ideia estranha para
um jurista brasileiro, que pensa, por sua vez, que um
Código Civil contribui justamente para promover a
justiça. Este é o caso de dizer: o estrangeiro e o estra-
nho andam aqui (e muitas vezes ...) de mãos dadas!
Segundo o jurista brasileiro, ao estabelecer regras
claras e facilmente identificáveis, um Código Civil
torna o Direito mais compreensível e acessível – algo
que vai em direção a um melhor senso de justiça.
Além disso, um Código contribui para a coerência
do Direito, notadamente entre áreas consideradas
como relativamente independentes umas das outras,
tais como o Direito dos Contratos e o Direito das
Sucessões, ou ainda dentro de um mesmo campo –
algo que vai também no sentido de uma justiça mais
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I – EM VEZ DE SI MESMO
sofisticada. Sob qual aspecto então um Código pode
ser encarado com desconfiança, tal como ocorre na
Inglaterra? Do ponto de vista dos ingleses, o proble-
ma reside principalmente no fato de que um Código
enfatiza valores como a lógica e a simetria, e se apre-
senta (e apresenta o Direito) como um sistema obje-
tivamente racional. Teme-se, na Inglaterra, que essas
ideias de coerência e de sistematicidade impeçam o
juiz de exercer a sua discricionariedade quando os
fatos reclamarem soluções pragmáticas, mesmo que
elas estejam fora de sintonia com outras soluções já
existentes. Os ingleses são muito vinculados à ideia
de que a justiça está menos relacionada à aplicação de
uma conceituação “objetiva” a todos os litígios e mais
ligada à adaptação da decisão do juiz aos fatos de cada
caso concreto. E o mesmo ocorre quando se está
diante de textos legislativos, que certamente podem
também ser encontrados na Inglaterra, tal como em
outros sistemas jurídicos.
Quando o jurista se situa em face de um
Direito como o brasileiro, que diz sim ao Código
Civil, e a um Direito como o inglês, que diz não ao
Código Civil, ele deve perceber com clareza que esses
dois sistemas jurídicos são “incomensuráveis” um em
relação ao outro. Mas o que é a “incomensurabilidade”?
Trata-se da ausência de uma “medida comum” a esses
dois ordenamentos jurídicos, que, por si só, permitiria
hierarquizá-los, “classificá-los” (dizer qual dos dois,

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