Em torno do Palácio Capanema - Breve reflexão a propósito de observação de Lucio Costa

AutorJosé Roberto Fernandes Castilho
Páginas41-83

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– Could beauty, my lord, have better commerce than with honesty?

– Ay truly, for the power of beauty will sooner transform honesty from what it is to a bawd, than the force of honesty can translate beauty into his likeness.

Shakespeare, Hamlet, Act III

I Introdução

Sendo estudo exploratório de caso notório, o presente texto pretende discutir, sob o enfoque jurídico prevalente, uma pequena observação do arquiteto Lucio Costa (1902-1998) a respeito da ilegalidade urbanística, em que a avalia como particularmente positiva. Defendendo o processo que presidiu a construção da sede do antigo Minis-tério da Educação e Saúde (MES), atual Palácio Gustavo Capanema – denominação oficial que o edifício recebeu em 1985, por meio do Decreto nº 91.188 (governo Sarney) –, diz em resumo o grande arquiteto brasileiro nascido na França que este edifício, símbolo eloquente do modernismo, é prova maior de que a ilegalidade urbanística é fecunda e criativa enquanto o respeito à lei seria, por oposição suposta, conservador e estéril. O regime da legalidade urbanística, portanto,

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que aprisionaria, é contraposto ao da liberdade criadora e o palácio que sediou o “Ministério do Homem, destinado a preparar, compor e afeiçoar o homem do Brasil” (definição da autoria de Capanema) constituiria prova disso.

Além de simplista, esta lógica vai de encontro aos princípios do Estado de Direito e destrói por completo todo o precário edifício do nosso Direito Urbanístico, que muito lentamente se afirma. Portanto, não pode absolutamente ser aceita – salvo como provocação. Na ver-dade, a construção daquele notável edifício é cercada de sombras e de perguntas não respondidas. Por exemplo: qual era o projeto apresentado somente por Lucio, no concurso de 1935, e que foi desclassificado? Como, em tão pouco tempo, Lucio Costa, que era um arquiteto acadêmico, namorado da “virgem casta” do neocolonial (na expressão de Manuel Bandeira), depois de alguns anos de inatividade ou, como diz, de “chômage” (1931-1935), pôde transformar-se num modernista e arauto do modernismo? Qual a participação dos demais coautores, notadamente Niemeyer e Reidy, e, antes deles, qual teria sido o “risco original” de Le Corbusier (somente este “risco” é atribuído, no Brasil, ao franco-suiço)? Como se explica e justifica que Gustavo Capanema, Ministro da Educação e Saúde no período de 1934 a 1945, pudesse romper tão facilmente tanto com o concurso que antes lançara quanto com a lei urbanística do então Distrito Federal?

É especialmente esta última pergunta – concernente à ilegalidade no levantamento daquele prédio fundador de nova estética juntamente com o prédio vizinho da Associação Brasileira de Imprensa – ABI, dos irmãos Roberto1– que se tentará discutir no presente texto. Na

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verdade, a um só tempo a obra violou (i) as normas administrativas do concurso, (ii) as normas urbanísticas do Distrito Federal e (iii) as normas da ética profissional, como veremos. No que toca às demais questões, cumpre destacar que a construção do Palácio tem sido tratada como espécie de fábula, tantas foram as versões dos participantes. Fábula é sinônimo de invencionice, é “narração de histórias imaginadas”.

Efetivamente, apesar dos numerosos escritos a respeito, talvez nunca se tenham as respostas definitivas para as demais questões, mas a última, como dito, pode ser respondida com alguma facilidade à luz do Direito – e do Direito Urbanístico – na História. Não é à toa que poucos meses separam o início das obras do Palácio, que teve a pedra fundamental lançada aos 24 de abril (mas as obras começaram efetivamente apenas aos 2 de maio), e a Carta outorgada de 10 de novembro de 1937, que instaurou em definitivo a ditadura de Getúlio Vargas: estes fatos se relacionam diretamente por serem manifestações de um mesmo processo político. Mais do que isso: o longo período de construção do edifício coincide quase exatamente com o do regime de exceção (1937-1945). De outro lado, do ponto de vista projetual, eles se relacionam também com o fato de o edifício, após a dilatada construção, ter se convertido “na primeira realização, em grande escala, dos princípios arquitetônicos e urbanísticos de Le Corbusier”, tal como escreve o espanhol Jorge Sainz2. É que, em razão dos elos da política autoritária, os autores do projeto tiveram amplo espaço de liberdade para conceber e criar a edificação, que pousa sobre uma praça.

II O processo e a obra

Lucio Costa é, reconhecidamente, o nome central da Arquitetura moderna – ou modernista (o sufixo não é irrelevante) – no Brasil. Ao lado de sua atividade profissional, deixou poucos escritos, apenas textos esparsos publicados em revistas e jornais, mas de grande impor-

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tância do ponto do pensamento arquitetônico. Dentre eles, destaca-se um opúsculo publicado em 1980 e reeditado em 2002. Trata-se de Arquitetura, que integrava uma coleção de pequenos livros escritos por grandes autores, patrocinada pelo então Ministério da Educação e Cultura e destinada ao ensino médio. A obra é composta de textos diversos, dentre os quais ressalto um que se denomina “Edifício Gustavo Capanema”, de poucas páginas. Lucio Costa sublinha, ele próprio, a “serena beleza” do edifício situado no centro do Rio de Janeiro (Rua da Imprensa, 16), em meio à “espessa vulgaridade das edificações circunvizinhas”. Observa, porém, que este ”marco definitivo da nova Arquitetura brasileira” – como, com razão, afirma – “desrespeitou tanto a legislação municipal vigente, quanto a ética profissional e até mesmo as regras mais comezinhas do saber viver e da normal conduta interesseira” (p. 111). Mais à frente, aduz que “quando o estado normal é a doença organizada e o erro lei – o afastamento da norma se impõe e a ilegalidade, apenas, é fecunda” (p. 113).

Em referência ao palácio, pretende-se refletir sobre a apontada lógica de que a ilegalidade urbanística seria fecunda e a obediência à norma seria, a contrario sensu, estéril porquanto cerceadora da liberdade criadora. Cabe antes esclarecer porque razão o edifício-sede do Ministério da Educação e Saúde (ministério criado em 1930) violou ao mesmo tempo os padrões legais e éticos do mesmo modo que afrontou, do ponto de vista estético, os padrões acadêmicos vigentes – afronta valorizada e mesmo estimulada por LC diante do embate entre modernistas e acadêmicos. Violou a ética porque houve um concurso para escolha do melhor projeto e o projeto de Lucio Costa e outros – inspirados no original de Le Corbusier, como destaca – surgiu depois de 1935, quando o certame foi aberto e logo encerrado, com atribuição do prêmio de 40 contos para outro profissional (e ainda prêmios para o segundo e terceiro classificados)3.

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Portanto, diz ele próprio, “a ética profissional mandava que a obra fosse atribuída a um dos premiados no concurso havido, ainda que fossem sacrificados os melhores princípios da arte de construir – os prêmios foram efetivamente pagos, mas venceu a Arquitetura” (p. 111). Ou seja, o projeto vencedor do concurso, de autoria de Archimedes Memória (diretor da Escola Nacional de Belas Artes desde a destituição de Lucio Costa, aos 18 de setembro de 1931), em extravagante estilo marajoara, não foi levantado apesar da decisão do júri do concurso – integrado pelo próprio Gustavo Capanema – Ministro da Educação e Saúde por 11 anos –, na condição de Presidente. Memória ganhou o certame, recebeu o prêmio, mas seu projeto não foi levantado porque Capanema – protótipo de “intelectual no poder” – não ficou satisfeito com ele, numa decisão individual de pura arbitrariedade. Em carta a Vargas, o ministro diz, com franqueza, que o projeto “é de um mau-gosto evidente”. Daí ter solicitado oficialmente a Lucio Costa, em carta datada de 25 de março de 1936, a “elaboração de um projeto de edifício para sede desta Secretaria de Estado”, referenciando tratativas anteriores e solicitando ainda “que declareis qual o preço pelo qual o Ministério poderá adquirir esse vosso trabalho”.

Na verdade, como escrevem Maurício Lissovsky e Paulo Sérgio Moraes de Sá, “testemunhos variados relatam como Gustavo Capanema, cercado por uma plêiade de assessores modernistas (Manuel Bandeira, Rodrigo Melo Franco de Andrade e, principalmente, Carlos Drummond de Andrade4), teria ficado ‘desolado com o resultado’ do

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concurso, decidindo-se então por chamar Lucio Costa”5que, aliás, teve seu desconhecido projeto inicial desclassificado. Não existem referências nenhumas sobre o projeto original, exclusivamente de Lucio, que nunca foi por ele divulgado. Este, por sua vez, uma vez convidado, conseguiu convencer o Ministro a obter de Getúlio Vargas a vinda de Le Corbusier – que à época se destacava como teórico da Arquitetura – para colaborar no projeto. Isto aconteceu neste mesmo ano: de dirigível, ele chega ao Rio aos 13 de julho de 1936 onde fica por quatro semanas (seria a segunda vez que visitava a cidade, onde estivera em 1929 e, pouco antes de falecer, voltaria em 19626). Traçou, então, o risco de um edifício que seria levantando em outro local, junto ao mar, e não na Esplanada do Castelo e a partir desse “risco” é que os outros arquitetos – com Costa à frente – definiram o projeto definitivo. Le Corbusier teria sido uma espécie de “consultor” da equipe.

Em 1936, a equipe constituída por Lucio Costa para projetar a obra foi composta por seis jovens arquitetos, ou seja, Carlos Leão, Afonso Eduardo Reidy, Jorge Moreira, Ernani Vasconcellos e Oscar Niemeyer. Formalmente, portanto, teria ocorrido uma criação integrada, em coautoria, envolvendo um coletivo de sete arquitetos. Mas a participação deles teria sido desigual. Quanto à atuação fundamental de Le...

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