Em meio ao caos - formação do pensamento jurídico urbanístico brasileiro

AutorPaulo Somlanyi Romeiro
Ocupação do AutorAdvogado, doutor em Direito Econômico, Tributário e Financeiro pela Faculdade de Direito da USP (FADUSP)
Páginas39-155
39
eM Meio Ao cAoS – forMAÇÃo Do PeNSAMeNTo
jUríDico UrBANíSTico BrASiLeiro
1.1. Um eventual direito do urbanismo
A menção a um ai nda eventual direito ur bano aparece pela
primeira vez n a doutrina brasileira na obra de Hely Lopes Mei-
relles, Direito municipal brasileiro, de 1964, aind a que a edição
de 1957 já trouxesse toda uma teoria sobre o urbanism o e o
plano di retor1. Argumentamos que, pela s característica s próprias
do funcionamento do campo jurídico, de sua dogmática e dos
efeitos do seu discurso – embora a 1ª edição do livro já tenha
completado 60 anos e o pensa mento jurídico urban ístico do Bra-
sil tenha pa ssado por transformações nesse período –, parte da
doutrina bra sileira ainda reprodu z e considera válidos al guns dos
argumentos e ju stificativas apresentado s pelo autor. Não apenas
pela obra em si, é claro, ma s por refletir um determi nado pensa-
mento relativo ao sens o comum teórico sobre o fenômeno urba-
1 M EIRELLES, Hely Lopes. D ireito municipal bra sileiro, vol. I, 19 57.
CAP ÍTUL O 1
Direito urbanístico: entre o caos e a injustiça
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no da época que, a nosso ver, não foi totalmente s uperado. Pode-
-se dizer, inclusive, que isso acontece em parte como resu ltado
de sua própria inserção no trabalho jurídico.
A obra, por seu inegável pioneiri smo2, nos traz pistas sobre
a origem do pensamento jur ídico urba nístico brasileiro e nos
permite compreender as jus tificativas da das para a existênci a da
legislação u rbanística, bem como especula r sobre o eventual
surgimento de u ma disciplin a jurídica relaciona da a ela e de onde
vem sua verdade.
Nos interessa nessa a nálise compreender o que legitim a a
atuação de um p oder sobre o território e a existência de norm as
urbaní sticas do ponto de vista do conheci mento sobre fenômeno
urbano, ou seja, que visão do urbano é incor porada pelo pensa-
mento jurídico urbanístico e também como essa justi ficativa se
traduz em a rgumentos jurídicos.
Em sua obra, Hely Lopes Meirel les faz menção a um even-
tual direito do urbanismo que seria u m ramo relacionado ao
estudo da ordenação u rbana.
As lim itações urba nístic as desenvolveram- se de tal modo nas
nações civ ilizadas e pa ssaram a preocupar t ão intensamente os
jurist as, que já se fala em esc rever sobre um novo Direit o, o
“Direito do Urba nismo”, que seria o ramo pr ivativo do est udo
jurídico d a ordenação urbana e d a planificaç ão físico-socia l dos
espaços habitávei s, ou, simplesmente, o planeja mento territori al
e comunitá rio da cidade e do campo3.
Essa despretensiosa menção a u m direito do urbanismo
pode passar sem qua lquer questionamento sobre a ori gem do
2 Con statado por todos que v ieram depois dele.
3 M EIRELLES, Hely Lopes. Dir eito municip al brasilei ro, vol. I, 1964,
p. 310.
Em meio ao caos – formação do pensamento jurídico urbanístico brasileiro 41
saber e das razões que justificam a existência d as normas urba-
nísticas e do d ireito urbaní stico. A utilização do conceito direito
do urbanismo, entretanto, não deve ser despreza da. Pelo con-
trário, é bastante significativa , pois indica u ma afiliação direta
a um saber. A razão de existir do direito urba nístico seri a, por-
tanto, para Meire lles, a positivação de uma t écnica, que nasce de
um determ inado saber, que tem pretensão de ciência. O urba -
nismo define a verd ade do discurso do di reito urbanístico e, com
isso, seu olhar sobre o fenômeno urba no.
Como veremos, a ligação umbilica l do direito urbanístico
com o urbanismo é a principal justificativ a para a existência
desse ramo do di reito, resultado da existência e desenvolv imen-
to de normas que legal izam u ma técnica. O se nso comum teó -
rico da época ref letido na doutrina apresenta a ideia de um ur-
banismo como ciência, técnic a e arte capaz de pôr ordem no caos
urbano. Abordagem que fa z com que não haja espaço (ou razão)
para discutir a legitim idade das norma s urbaní sticas. Elas si m-
plesmente existem e são re sultado da legali zação de uma técn ica,
são regras der ivadas do avanço cien tífico. Não apenas essa ideia
legitima de a ntemão as normas urba nísticas e a existênci a desse
eventual ramo do d ireito, como naquele momento, para Hely
Lopes Meirelles, o d ireito estaria atra sado em relação às normas
técnicas. Por seu car áter positivist a, também não h á qualquer
questionamento sobre qua l a razão da necessidade de posit ivação
de normas técnicas. Ser ia por falta de legitimidade social?4 O
habitus e o avanço científico não deveriam ser suficientes? Em
todo caso, se explicita uma crença em um u rbanismo neutro,
acima de qu alquer suspeita, capaz de, por meio de seus peritos,
orientar as decisões políticas.
4 Veremos que m ais tarde a justif icativa recai ta mbém sobre o indivi-
dualis mo do ser humano.

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