O elogio das aparências: Hannah Arendt e a crítica aos Direitos Humanos
Autor | Helena Guimarães |
Cargo | Licenciada em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Portugal) |
Páginas | 10-39 |
O elogio das aparências: Hannah Arendt e a
crítica aos Direitos Humanos
Helena Guimarães*
Introdução
Este trabalho propõe-se esboçar uma linha de argumentação que permi-
ta compreender a crítica arendtiana aos Direitos Humanos. Tão complexo
quanto multifacetado, abordar o pensamento de Hannah Arendt – como se
fará – sob um ângulo específico é sempre, de algum modo, arriscar a distor-
ção. E isto, por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, porque nos coloca
o mesmo problema que o Aleph a J. L. Borges, condenados que estamos, pela
discursividade, à enumeração sucessiva de uma série de categorias e distin-
ções – entre outras, acção, mundo comum, esfera pública, diálogo, aparecer,
pluralidade, política, por um lado; natureza, esfera privada, labor, necessida-
de, pensamento e filosofia, por outro – que só apreendidas simultaneamente
se revelariam em toda a sua luminosidade. Em segundo lugar, porque uma
abordagem mais acentuadamente teórica de uma qualquer temática – no
caso, a crítica dos Direitos Humanos –, não honraria o que de fundamental-
mente seu Hannah Arendt tem para nos oferecer: um pensamento que acon-
tece sob o signo do compromisso com os outros, com a humanidade mais
humana que aparece, um pensamento, enfim, comprometido com o mundo,
porquanto é o próprio mundo que o convoca e o legitima.
* Licenciada em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Portugal) e Mestre em
Filosofia Moderna e Contemporânea pela mesma Universidade, com a tese O Mal – Pensar com Hannah
Arendt (Rei dos Livros, Lisboa, 2003). É doutoranda em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Nova
de Lisboa e bolseira da FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia). E-mail: helenac1971@hotmail.com
Direito, Estado e Sociedade n.43 p. 10 a 39 jul/dez 2013
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Para obviar a estas dificuldades, tentar-se-á, por um lado, não sendo pos-
sível sobrepô-las, articular aquelas categorias – algumas, as que mais eviden-
temente permitem compreender o tema em análise –, em proximidade; por
outro, far-se-á um esforço no sentido de não perder de vista o contexto mun-
dano em que elas, verdadeiramente, adquirem o seu sentido, estabelecendo a
ponte entre o universo filosófico em que Arendt se move e os acontecimentos
que suscitaram as suas críticas e engendraram a sua própria fenomenologia.
Assim, a primeira parte deste estudo dedicar-se-á à análise arendtiana
da tradição filosófica inaugurada por Platão, dando destaque ao papel que,
segundo Arendt, ela terá tido na irrupção do sem-precedentes que trau-
maticamente marcou o século XX – o totalitarismo –, e perante o qual a
Declaração dos Direitos do Homem viria a revelar-se uma fórmula vazia.
É que, rejeitando Arendt a noção de um qualquer tipo de explicação cau-
sal para o fenómeno totalitário, não deixa de ser possível vislumbrar uma
relação entre a tradição ocidental da filosofia política e o espírito da idade
Moderna, como se este levasse a cabo uma radicalização dos fundamentos
da primeira: o apagamento da pluralidade, o controlo da espontaneidade,
a fusão de juízo e episteme, de legitimidade e obediência.
Para Arendt, repita-se, o fenómeno totalitário é radicalmente novo,
contudo
o fim de uma tradição não significa necessariamente que os conceitos tradicio-
nais tenham perdido o seu poder sobre o espírito dos homens. Ao contrário,
parece, às vezes, que este poder das velhas noções e categorias se torna tão
mais tirânico quanto a tradição perde a sua vitalidade e a lembrança do seu
começo se afasta1.
Ainda na primeira parte, far-se-á também uma primeira prospecção do
fundo em que assentam os alicerces do pensamento arendtiano – um fundo
que, como indica o título do ponto 1., está, surpreendentemente, à superfície.
Depois, entrar-se-á no debate que é razão de ser maior deste trabalho,
convocando a concreta História que o animou, sem por isso, sempre que
se afigurou oportuno, se deixar de se evocar alguns conceitos arendtianos
– que não são, afinal, senão outro rosto do dado.
1 ARENDT, 1972, p. 39.
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