A efetiva natureza jurídica do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional

AutorRômulo Cristiano Coutinho da Silva
Páginas222-238

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1. Introdução

A economia do capitalismo moderno tem como uma de suas principais características inserir as empresas em um mercado altamente competitivo, que exige dos empresários deste meio constante atenção no que se refere aos custos e despesas da atividade que realiza, a fim de que sejam reduzidos, ao máximo, os gastos empresariais.

Neste contexto, o planejamento tributário revela-se extremamente útil, pois a prévia organização dos negócios que fazem parte do cotidiano empresarial, com vistas à realização de uma economia legítima de tributos, é fundamental para que as atividades da empresa sejam desenvolvidas com o menor custo tributário possível. Ademais, o planejamento tributário, porque constitui, na grande maioria das vezes, ponto estratégico na organização da empresa, costuma ser objeto de preocupação, quer por ocasião da constituição da sociedade, quer durante a gestão daquelas sociedades já constituídas.

Sendo assim, sobretudo em razão da crise econômica por que passa o mundo, a discussão acerca do planejamento tributário como forma de prever e dispor os negócios jurídicos do contribuinte, de modo que haja uma economia lícita de tributos, sempre respeitando os limites impostos pela lei, continua sendo relevante.

No Brasil, em que pese a inexistência de qualquer norma que vede expressamente o contribuinte de estruturar seus negócios jurídicos com o fim exclusivo de obter economia fiscal, realizar um planejamento tributário, nos dias de hoje, significa aventurar-se no mar da insegurança jurídica, muitas vezes em razão das premissas equivocadas de que partem a autoridade administrativa e os órgãos julgadores para desconsiderar os

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atos e negócios jurídicos realizados nesse sentido.

Assim, é preciso identificar, no contexto do Sistema Constitucional Tributário nacional, os limites normativos ao planejamento tributário efetivamente positivados no ordenamento jurídico pátrio, delimitando-se, com isso, o âmbito de atuação do Fisco na requalificação dos negócios jurídicos realizados pelo contribuinte.

É exatamente neste cenário que se faz importante definirmos a verdadeira natureza do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional, que continua alimentando calorosos debates doutrinários acerca do seu efetivo alcance no combate aos planejamentos tributários elaborados pelos contribuintes.

2. O signo elisão tributária e suas diferentes significações

O estudo do tema do planejamento tributário, bem como da natureza jurídica da norma inserta no parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional, esbarra, necessariamente, nos conceitos de elisão, evasão e elusão, amplamente difundidos, e estudados pelos doutrinadores do Direito Tributário.

Há, inequivocamente, um problema semântico com relação ao signo elisão tributária, pois, quando voltados os olhos para a doutrina, percebemos que inúmeras são as variações terminológicas encontradas para definir tal instituto. Por esse motivo, faz-se essencial a exposição dos principais critérios que diferenciam as significações costumeira-mente utilizadas, de modo a se buscar uma melhor compreensão do fenômeno elisivo.

É importante destacar, ainda, que apesar de haver certa dificuldade semântica e diferentes posições doutrinárias com relação aos conceitos de elisão, evasão e elusão, o presente artigo adotará, após terem sido elencadas as diferenças conceituais, uma terminologia específica, a fim de facilitar entendimento da posição aqui defendida.

Especificamente quanto à elisão tributária, Antônio Roberto Sampaio Dória, em seu estudo pioneiro sobre o tema, propõe separá-la em duas espécies: a elisão induzida pela lei e a elisão resultante de lacunas da lei. Na primeira espécie, a própria lei deseja, por razões extrafiscais, favorecer determinadas situações, tributando-as de modo menos oneroso, ou até mesmo excluindo-as do campo de incidência da norma tributária.1

Para o autor, tais medidas não se caracterizariam como uma verdadeira elisão tributária, mas sim como uma elisão imprópria, pois, nestes casos em específico, o contribuinte não precisa alterar a estrutura negociai para obter melhores resultados econômicos, uma vez que a previsão legal, por si só, quer beneficiá-lo. Essa espécie se assemelharia às denominadas "opções fiscais" relatadas por Marco Aurélio Greco.2

Na visão de Sampaio Dória, a verdadeira elisão tributária é a que resulta de lacunas da lei, ou seja, que decorra de espaços vazios presentes no ordenamento, que serão devidamente preenchidos pelos contribuintes que buscam não se sujeitar à tributação nestas ocasiões em que o legislador deixa "malhas e fissuras no sistema tributário".3

Com relação à figura da evasão fiscal, Sampaio Dória a apresenta de duas formas diferentes, que serão estruturadas de acordo com o comportamento do indivíduo que se vê diante de uma obrigação tributária real ou potencial. Assim, o autor separa a evasão tributária em omissiva (intencional ou não intencional) e comissiva (sempre intencional).4

A evasão comissiva, embora seja sempre decorrente de conduta intencionalmente pra-

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ticâda pelo contribuinte, é subdividida pelo autor em lícita e ilícita. Dentro dessa subdivisão, a evasão ilícita é entendida como aquela derivada de ação consciente e voluntária do indivíduo que, por meios ilícitos, elimine, reduza ou retarde o pagamento do tributo devido. A evasão lícita, em contrapartida, decorre de condutas perpetradas pelo contribuinte que, por meios lícitos, organiza-se para eliminar, reduzir ou retardar a ocorrência do fato gerador. Essa última também é denominada por Sampaio Dória de evasão legítima.

Dentre as diversas balizas conceituais estabelecidas, ao tratar da evasão legítima, o autor dará preferência, para traduzir as condutas lícitas do contribuinte, ao termo elisão fiscal, pois, no seu ponto de vista, a expressão evasão lícita representaria uma mçáutívelcontradictio in terminis, tendo em vista que algo não pode ser legal e ilegal ao mesmo tempo.

Lembrando-se da frase "evasão de presos", Sampaio Dória chegará à conclusão de que o termo evasão sugere, de imediato, uma fuga ardilosa da obrigação tributária, sendo impossível, por isso, acrescentar-lhe os adjetivos ilegal e legal, uma vez que, no primeiro caso, seria pleonástico e, no segundo, totalmente incompatível.5

O delineamento conceituai acima mencionado representou marco importante no estudo do planejamento tributário, já que, a partir dos estudos de Sampaio Dória, inúmeros autores passaram a se alinhar à idéia de que o termo evasão não deve ser associado, de maneira alguma, à realização de atos e negócios jurídicos lícitos.6

Como bem observou Hermes Marcelo Huck: "ainda que alguns autores concordem com a expressão evasão legal, corrente majoritária considera-a como contradição terminológica, já que uma categoria não pode ser legal e ilegal ao mesmo tempo, não havendo possibilidade de se falar em fraude fraudulenta e fraude não fraudulenta, como observava Sampaio Dória".7

Embora esta seja a definição adotada pela corrente majoritária quando do estudo do tema, há ainda estudiosos de elevado gabarito que defendem posição divergente no que diz respeito à conceituação do termo evasão como uma conduta ilícita.

Hugo de Brito Machado, por exemplo, entende que o vocábulo "evasão" deve ser utilizado para designar condutas lícitas, enquanto a expressão "elisão", por sua vez, deve ser utilizada para qualificar condutas ilícitas. Na sua linha de raciocínio: "Se tivermos, porém, de estabelecer uma diferença de significado entre esses dois termos, talvez seja preferível, contrariando a preferência de muitos, utilizarmos evasão para designar a conduta lícita, e elisão para designar a conduta ilícita. Realmente, elidir é eliminar, ou suprimir, e somente se pode eliminar ou suprimir, o que existe. Assim, quem elimina ou suprime um tributo, está agindo ilicitamente, na medida em que está eliminado, ou suprimindo a relação tributária já instaurada. Por outro lado, evadir-se é fugir, e quem foge está evitando, podendo a ação de evitar ser preventiva. Assim, quem evita pode estar agindo licitamente".8

Ora, como fica nítido, o autor adota posição diametralmente oposta àquela defendida pela maioria dos estudiosos do Direito Tributário, uma vez que eleva ao campo da licitude o instituto da evasão,

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alocando na seara da ilegalidade a figura da elisão tributária.

Não há dúvidas que definições como essa difundida por Hugo de Brito Machado são de extrema relevância para o complexo debate doutrinário que envolve a questão do planejamento. Contudo, no presente artigo, a elisão será adotada, na esteira de Sampaio Dória, sempre para traduzir instituto jurídico de direito positivo, utilizado para designar condutas lícitas, que decorrem do esforço intelectual do contribuinte na previsão de espaços legais na legislação tributária, que evitem, de modo legítimo, a subsunção dos seus atos e negócios jurídicos às hipóteses de incidência tributária, e que resultem, ao final, em uma economia legítima de tributos. Diferencia-se, portanto, das denominadas opções fiscais, que prevêem um comportamento induzido ou simplesmente admitido pelo legislador.

Levando em consideração essas diferenças semânticas reveladas na doutrina, Sampaio Dória idealizou três critérios para diferenciar uma conduta elisiva de uma conduta evasiva: licitude dos meios, tempo da conduta (antes ou após a ocorrência do fato jurídico-tributário) e eficácia dos meios (compatibilidade da forma com o seu...

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