Efeitos da tributação sobre o direito concorrencial. Uma visão harmónica do ordenamento

AutorMarcel Bragança
Páginas121-147

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I - Introdução

O Direito, entendido como prudência ou técnica de solução de conflitos,1 deve ser concebido na sua unicidade. Contudo, a atomização pela qual passou e vem passando, muitas vezes traduz aparentes incongruências de forma a dispor, em pólos opos-tos, certos ramos do Direito. Assim; apenas de maneira ilustrativa, é possível cogitar de conflito, ou "choque de princípios", entre o direito do trabalho e o direito processual civil,2 ou mesmo em relação ao direito societário, mormente quando se trata da execução dos créditos trabalhistas, em que comum é o atropelo de certos preceitos processuais, societários e até constitucionais, para a satisfação do direito do hi-possuficiente.3

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O operador do direito, assim, vê-se envolto por conjunto normativo de extensão assustadora, com princípios próprios de cada ramo e infindáveis diplomas legais, circulares, resoluções, portarias, decretos, instruções etc. Esse contexto, todavia, agrava-se na medida em que os ramos são considerados, seja pela doutrina, seja pela jurisprudência, como compartimentos estanques, voltados aos seus próprios princípios, o que atrapalha não apenas a aplicação do já complexo ordenamento jurídico, mas também o equilíbrio social. Não bastasse, a teia de normas (aqui entendidas no sentido amplo), na medida em que se alastra, no infindável intento do legislador (aqui também entendido de forma ampla) de tudo re-gulamentar/normatizar, distancia-se, o mais das vezes, dos princípios fundamentais do ordenamento jurídico.

Não há como se olvidar, entretanto, por mais que se criem novos ramos e por mais que surjam, dentro desses mesmos ramos, novos princípios, que o Direito deve ser visto na sua unicidade, de forma que a visão do todo alicerçada em princípios mestres possibilite a mínima interferência prejudicial de um ramo sobre o outro.

Assim, v.g., cotejando o direito societário e o concorrencial, é possível, com a visão do todo, procurar atingir a harmonização do ordenamento. A necessidade da neutralidade concorrencial do direito societário já foi alvo de estudos empreendidos pelo Professor da Faculdade do Largo de São Francisco, Calixto Salomão Filho.4 Ainda que não se admita mais o atingimento de finalidades típicas do direito concorrencial, por meio do direito societário, a neu-tralidade deste, em relação àquele, é o mínimo exigível.

Dessarte, o presente trabalho é dividido em duas partes. A primeira, tem por escopo apenas discorrer algumas linhas a respeito da neutralidade concorrencial do direito societário. A segunda parte, que em verdade consiste no cerne do presente estudo, tem por fim demonstrar a necessidade da mínima neutralidade concorrencial do direito tributário, mormente em se considerando a presente fase da realidade nacional, marcada pela tentativa de retirada do "Estado Providência" de diversos setores da economia e a necessidade dos ajustes fiscal e orçamentário.

Pretende esse estudo permanecer centralizado na análise dos setores antes con-trolados de algum modo pelo Estado, como o setor elétrico, de telecomunicações e de petróleo.

II - A livre concorrência e o direito brasileiro

A intervenção do Estado no domínio económico, resultante da consciência da imperfeição da teoria que defendia a automática regulação dos mercados, fomentada; entre outros fatores, pela revolução soviética de 1917 e pelo New Deal, nos EUA, restou contestada a partir da década de 70, com o esgotamento da economia planificada e a fragilidade económica decorrente da crise do petróleo de 1973. A Inglaterra, como nação pioneira, por meio de sua primei-ra-ministra Margaret Thatcher, buscando resgatar a enfraquecida economia inglesa, empenhou-se em proceder a uma contínua transferência de ativos públicos para o setor privado, concretizando o que se chamou de privatization.

Desde então e, entre nós, a partir do governo Collor, tem-se acompanhado a verdadeira onda de privatizaçõesque tem mar-cado a realidade nacional, paralelamente à mundial, até mesmo em setores antes inconcebíveis como os de petróleo, energia e telecomunicações.

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Simultaneamente à essa realidade, o surgimento da grande empresa transnacio-nal (considerados também os grupos de empresa), como forma organizacional da produção,5 trouxe ao mundo jurídico o reconhecimento do poder económico6 e sua consequente institucionalização.7 Deixou-se de lado a velha concepção tradicional que considerava os agentes económicos de médio e pequeno portes, sem poder para exercer influência nas regras de mercado.8 O direito antitruste, velho conhecido dos EUA, procura encontrar seu definitivo espaço no ordenamento jurídico nacional. Não apenas como mero preceito programático,9 mas como instrumento de prevenção da difusão do poder económico e como forma de renovação do capitalismo,

A preocupação com o abuso do poder económico restou consagrada na Constituição de 1946 e foi assim traduzida pelo deputado Agamenom Magalhães:, "Os trustes, cartéis, entendimentos ou ajustes de qualquer organização, grupo, empresa ou indivíduo, seja de que natureza forem, para dominar os mercados internos, eliminar os concorrentes e explorar os consumidores pelos preços ou qualquer outra força de opressão serão declarados fora da lei e dissolvidos de acordo com a legislação especial que for votada pelo Congresso".10

Aos 10 de setembro de 1962 foi promulgada a Lei 4.137, com forte espeque na legislação antitruste norte-americana, mas dela diferindo em alguns aspectos. Benja-min Shieber obtempera:11 "A lei antitruste brasileira, ainda que valendo-se do direito antitruste norte-americano, é diferente. Para apontar uma das diferenças mais importantes, referimo-nos ao fato de que a lei brasileira permite legitimação de acordos cuja função normal é restringir a concorrência, v.g., acordos entre concorrentes para fixação de preços, enquanto tais acordos são

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injustificáveis no direito antitruste norte-americano".

A Constituição de 1967, alterada com a Emenda Constitucional 1/69, dispunha em seu art. 160, inc. V, que a ordem económica e social tinha por fim realizar o desen-volvimento nacional e â justiça social, com base, entre outros, no princípio da repressão ao abuso do poder económico, caracterizado pelo domínio dos mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros.

A mesma Carta dispunha, no art. 163, que eram facultados a intervenção no domínio económico e o monopólio de determinada indústria ou atividade, mediante lei federal, quando indispensável por motivo de segurança nacional ou para organizar setor que não pudesse ser desenvolvido com eficácia no regime de competição e de liberdade de iniciativa.

A Constituição de 1988, por sua vez, dispõe no art. 173 que a exploração direta de atividade económica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.12 O artigo supra, conjugado com o 174 da Carta, evidencia que somente é permitida a atuação supletiva do Estado na atividade económica. A CF/88 elenca, ademais, como fundamentos da ordem económica brasileira, a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, com observância de vários princípios, dentre eles, a livre concorrência. O art. 173, § 49 reza que: "A lei' reprimirá o abuso do poder económico que vise à dominação dos mercados, à elimina-ção da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros".

Eros Roberto Grau,13 analisando os dispositivos constitucionais retro e com fulcro no entendimento de Canotilho, defende que o caput do art. 170 da CF encerra um princípio político constitucionalrriente conformador, ao passo que o consagrado no inc. IV do mesmo artigo (livre concorrência) encerra princípio constitucional impositivo..',

Por outro lado, o cotejo dos dois artigos demonstra que o poder económico foi institucionalizado pela CF/88. Com efeito, a livre concorrência (frise-se, não a concorrência livre, que pressuporia a inexis-tência de poder económico) significa liberdade de concorrência, caracterizada pelo elemento comportamental da competitividade. Não bastasse, a livre iniciativa implica desigualdade entre os agentes económicos gerando a rivalidade.

Aos 11 de junho de 1994 foi promulgada a Lei 8.884, que em seii art. 1° aduz: "Essa lei dispõe sobre a prevenção e a.re-pressão às infrações contra a ordem económica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder económico".

Nesse prisma, elucidativa a lição de Eros Roberto Grau:14 "A expressa referên cia aos 'ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder económico' e a afirmação de que 'a coleti-vidade é a titular dos bens jurídicos protegidos por esta lei' definem a amplitude do conteúdo da Lei 8.884/94. Ela não é meramente uma nova lei antitruste; assim, seu fundamento constitucional não se encontra apenas, exclusivamente, no § 4Q do art. 173 da Constituição de 1988 - trata-se de lei

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voltada à preservação do modo de produção capitalista".

Os princípios constitucionais exercem relevância e supremacia sobre as próprias normas da Constituição.15 O desrespeito a esses princípios - que pode ocorrer também pelo descaso, omissão - é fator de perturbação institucional, trazendo a insegurança social em virtude dá ofensa a segurança jurídica. O primado da livre concorrência deve ser, portanto, respeitado. Não é princípio que encerra fim em si mesmo, mas tido como instrumento que permite a continuidade do modo de produção...

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