Os Efeitos da Aplicação do Princípio da Moralidade Administrativa à Gestão Pública

AutorGustavo da Silva Lopes
Páginas58-64

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1. Introdução

O constitucionalismo marcou o despertar da vontade humana de comandar seu próprio destino, participando da vida política do Estado. Galgou espaços até suplantar as formas, por vezes tirânicas, de governo sem iniciativa nem participação popular, em busca de um regramento mínimo de direitos como forma de proteção aos cidadãos perante o Estado.

O povo é o titular do poder e sua Constituição é a manifestação básica e essencial desta titularidade, que é colocada em risco inúmeras vezes, eis que é submetida a processos legislativos. Somente mediante a instauração de princípios, pode-se assegurar um caminho interpretativo a ser seguido, de modo a cristalinizar (ajustar português) e discutir a disparidade do ser com o dever ser, tornando possível se utilizar corretamente a Constituição1.

Antes da Constituição de 1988, nem todos os administradores aceitavam a moralidade administrativa como princípio jurídico. Enquanto alguns a acolhiam como requisito de validade dos atos da administração pública, com maior generosidade, outros recusavam a moralidade administrativa como índole jurídica.

Para garantir proteção contra abusos e arbitrariedades, o povo, representado pelo Poder Constituinte Originário, elencou princípios norteadores da administração pública.

Os princípios balizadores da conduta do administrador público são descritos no art. 37 da Carta Magna: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Estes têm como finalidade a consecução do bem comum entre o indivíduo e o Estado2.

Assim, com o advento da Constituição Federal de 1988, instituidora do Estado Democrático de Direito, ao prever a expressa admissão do princípio da moralidade, em seu art. 37, caput, reacenderam as discussões acerca do tema ético e moral no Direito, especialmente na seara administrativa, onde a obser-

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vância do princípio em epígrafe constitui pressuposto de validade dos atos e contratos administrativos, conforme exarado constitucionalmente.

Desta feita, o princípio da moralidade que, por força constitucional, deve nortear os atos e contratos administrativos, torna-se foro ideal para o debate acerca do estudo do conceito de moralidade administrativa, adequando as posturas do Estado contemporâneo ao sistema constitucional vigente3.

Inicialmente, se concebia moralidade como medida ou desdobramento da legalidade, sendo que, a posteriori, concluiu-se pela necessidade de se demarcar os contornos e abrangência de referidos princípios.

2. Conceito de moral
2.1. Direito e Moral

A fim de tecer considerações acerca do Direito e da moral, faz-se necessário, quiçá imprescindível, trazer a lume a teoria do "mínimo ético"4, exposta por diversos autores, dentre eles, o filósofo inglês Jeremias Bentham e o jurista alemão Georg Jellinek.

A teoria do mínimo ético sustenta que o direito açambarca apenas a parcela mínima de moral essen-cial à coexistência social, uma vez que as obrigações morais não são espontaneamente cumpridas. Faz-se necessário aparelhar a sociedade de meios que garantam sua própria existência.

Por meio desta teoria, o Direito não é algo diverso da Moral, mas uma parte desta, munido de sanções que garantem que seu cumprimento não se submeta a juízo de discricionariedade individual.

Desta maneira, conclui-se que, segundo esta teoria, tudo que é Direito é moral, mas nem tudo que é moral é Direito.

No entanto, em que pese o brilhantismo dos defensores da teoria do mínimo ético, é preciso salientar que nem tudo que se passa no mundo jurídico, na esfera do Direito, é ditado por motivos de ordem moral. Basta observar que algo pode ser imoral, contrário à moral, ou apenas amoral, indiferente à moral.

O comportamento moral é o comportamento espontâneo, eivado de adesão do sujeito por vontade própria, independente de carga coercitiva. Não há o que se falar em ato moral decorrente de coerção.

No mundo do Direito, essa adesão espontânea do sujeito ao espírito da norma não é uma regra. Inúmeras vezes o sujeito só adere à norma por estar coagido a fazê-lo, de forma que, muito embora se tenha alcançado o objetivo da norma, não se tem um comportamento moral.

Desta feita, podemos dizer que a moral é incoercível e o Direito é coercível, logo, o que distingue o Direito da Moral é a coercibilidade5.

2.2. Moral Crítica e Moral Convencional

A Moral pode ser observada sob dois prismas, quais sejam, a denominada moral convencional ou a denominada moral crítica.

A moral convencional consiste na observância de normas comportamentais decorrentes de juízos comuns preponderantes sobre o que é bom ou mau, certo ou errado, justo ou injusto6.

Moral crítica, por sua vez, é aquela decorrente da conduta humana institucionalizada. A moral crítica corresponde à justificação e legitimação do Estado e do Direito. Neste compasso, a moral crítica é sinônimo de ética.

Pode-se dizer que a moral crítica é composta de uma carga de justiça política, de valores superiores e princípios basilares, constituindo-se como que em uma espécie de reserva moral das instituições, da qual se pode haver consenso quanto sua validade, ao passo que a moral convencional pode ser objeto de dissenso, fruto de uma sociedade pluralista e com valores diversos.

Contudo, não significa que moral crítica e moral convencional se encontram em campos opostos, muito ao contrário, elas se comunicam permanentemente, partilhando conteúdo. A diferença é que a moral convencional se restringe a determinadas matérias, como valores e virtudes, ainda que decorrentes de fatores emotivos, enquanto que a moral crítica prima pelo uso da razão.

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Assim, o direito, enquanto fruto do pensamento racional do homem está intimamente ligado, naquilo que lhe cabe, à moral crítica, e a própria moral crítica se arvora no direito, numa relação de inter-dependência.

3. Moralidade e administração pública
3.1. Princípio da Moralidade

O princípio da moralidade impõe ao administrador, ou gestor público, a adoção de preceitos éticos em todas as suas condutas. Seus atos não podem estar adstritos apenas aos critérios de conveniência e oportunidade, mas devem se guiar pelo que é hones-to, pelo que se pode caracterizar como ético.

Acerca do princípio da moralidade, e corroborando os primeiros capítulos deste trabalho, dispõe com muita clareza Meirelles (2006, p. 89)7:

A moralidade administrativa constitui, hoje em dia, pressuposto de validade de todo ato da Administração Pública (CF, art. 37, caput). Não se trata - diz Hauriou o sistematizador de tal conceito - da moral comum, mas sim de uma moral jurídica, entendida como ‘o conjunto de regras de condutas tiradas da disciplina interior da Administração’. Desenvolvendo sua doutrina, explica o mesmo autor que o agente administrativo, como ser humano dotado da capacidade de atuar, deve, necessariamente distinguir o Bem do Mal, o honesto do desonesto. E, ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o honesto e o desonesto. Por considerações de Direito e de Moral, o ato administrativo não terá que obedecer somente a lei jurídica, mas também a lei ética da própria instituição, porque nem tudo que é legal é honesto, conforme já proclamavam os romanos: ‘nomomne quod licethonestum est’. A moral comum, remata Hauriou, é imposta ao agente público para sua conduta interna, segundo as exigências da instituição a que serve e a finali-dade de sua ação: o bem comum.

A moralidade administrativa está intimamente ligada ao conceito do "bom administrador", que no dizer de Sobrinho (apud MEIRELLES, 2006, p. 90)8

"é aquele que, usando de sua competência legal, se determina não só pelos preceitos vigentes, mas também pela moral comum". Desta forma, verifica-se que o bom administrador, guiado pela moralidade administrativa, é aquele que não apenas cumpre os preceitos legais, mas também adere espontaneamente ao comportamento moral.

Por essa razão, não se pode confundir o princípio da moralidade com o princípio da legalidade...

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