Educacao superior publica e o Future-se: o projeto do capital em tempos de ascensao da extrema direita/Public higher education and the Future-se Program: the project of capital in the rise of the far right.

AutorFilho, Antonio Goncalves

Introducao

O ensino superior no Brasil deve ser por nos compreendido como resultado de um processo de amplas e longas disputas entre projetos distintos de sociedade e de formacao. E nesse sentido que compreendemos que a educacao e um projeto em disputa, em todos os niveis, da educacao basica ao ensino superior. Uma disputa que tem inicio na definicao do proprio carater da educacao, se publica e/ou privada. Como afirma Meszaros (2005, p. 27), "e necessario romper com a logica do capital se quisermos contemplar a criacao de uma alternativa educacional significativamente diferente".

Para os que compreendem que a educacao e um direito social, e de todo(a)s, a defesa e de que deve ser laica, gratuita, socialmente referenciada e publica. Para outros segmentos, a educacao e um produto e, nesse sentido, deve ser tratada como uma mercadoria, servindo dos interesses do desenvolvimento capitalista, de modo que pode ser vendida e esvaziada de sentido social.

As disputas em torno dos projetos de educacao tem, de um lado, um conjunto de entidades (1) sindicais, movimentos sociais e organizacoes de profissionais da educacao, bem como o movimento estudantil. Estes defendem um projeto que tenha por base contribuir para a elevacao do pensamento critico e a leitura da realidade, a partir da totalidade da vida social e da compreensao das relacoes capital x trabalho, tendo como horizonte a emancipacao humana. Como afirmava Marx (2009, p. 71-72).

So quando o homem individual retoma em si o cidadao abstrato e, como homem individual--na sua vida empirica, no seu trabalho individual, nas suas relacoes individuais -, se tornou ser generico; so quando o homem reconhecer e organizar as suas forcas proprias como forcas sociais e, portanto, nao separar mais de si a forca social na figura da forca politica --(e) so entao (que) esta consumada a emancipacao humana. De outro lado, no projeto defendido pelo capital, que trata a educacao como uma mercadoria, temos os defensores da educacao para a qualificacao da forca de trabalho para o mercado e/ou como mercadoria no processo de revitalizacao dos fundos privados, sempre carregado de componente ideologico na tentativa de apassivamento da classe trabalhadora. Para Meszaros (2005, p. 35),

E por isso que hoje o sentido da mudanca educacional radical nao pode ser senao o rasgar da camisa-de-forca da logica incorrigivel do sistema: perseguir de modo planejado e consistente uma estrategia de rompimento do controle exercido pelo capital, com todos os meios disponiveis, bem como com todos os meios ainda a ser inventados, e que tenham o mesmo espirito. Vale destacar que os efeitos do projeto do capital aparecem como desconexos, mas representam o conjunto das acoes impostas para a educacao superior com o objetivo de transforma-la em mercadoria. Nesse processo, as indicacoes do Banco Mundial (BM), da Organizacao das Nacoes Unidas para a Educacao, Ciencia e a Cultura (Unesco) e da Organizacao Mundial do Comercio (OMC), uma vez que sao "sujeitos politicos coletivos do capital" (LIMA, 2007, p. 17), sao absorvidas sobre a perspectiva da "modernizacao" e da necessidade de alinhamento internacional com a politica da educacao superior. Submetem, assim, um conjunto de paises, em especial os de capitalismo tardio, como os da America Latina, a um mesmo processo educacional. Como afirma Lima (2007, p. 17):

A difusao destas nocoes cruciais da ideologia burguesa e realizada pelos organismos internacionais do capital no sentido de configurar as bases politicas do processo de mundializacao financeira e mundializacao de uma nova sociabilidade burguesa, no qual a educacao escolar tem papel central. Nesse sentido, deve-se efetuar a defesa de uma universidade publica, gratuita, laica, estatal, socialmente referenciada e antipatriarcal, que consiga garantir, como defende o Andes-SN (2013, p. 17), a "capacidade de assegurar uma producao de conhecimento inovador e critico, que respeite a diversidade e o pluralismo, contribuindo para a transformacao da sociedade". Essa se torna uma luta imprescindivel.

As crises e contrarreformas: tracos do projeto do capital

Compreender a situacao da educacao superior publica na atualidade nos coloca o desafio de analisar a realidade social para alem do imediato. Buscar compreender a realidade presente apenas por ela mesma e o caminho mais facil, mas tambem o mais superficial. Por isso, pensar o projeto de contrarreforma da educacao superior do seculo XXI implica pensar as duas principais crises ocorridas no final do seculo XX, quais sejam, a crise estrutural do capitalismo e a chamada crise do socialismo real.

A crise estrutural do capitalismo supera, em termos de qualidade e importancia, as crises ciclicas, e e marcada, a partir da decada de 1970, pela impossibilidade de recuperar as taxas de lucro do capital. Assim, o capitalismo busca novas formas para garantir sua ampliacao e reproducao, podendo ser resumido em seis elementos estruturantes, quais sejam: a) o aprofundamento da desigualdade e a ampliacao do fosso entre ricos e pobres no interior de cada pais e entre os paises; b) a necessidade de reconfiguracao do papel do Estado, com restricao de sua acao social e apropriacao do fundo publico; c) a ampliacao do uso da forca para a manutencao do controle social sobre o(a)s trabalhadore(a)s; d) o aumento do pauperismo; e) uma nova morfologia do trabalho, que redesenha o mundo do trabalho; e f) o recrudescimento do conservadorismo, na busca de ampliacao do dominio social.

Por outro lado, e nao com menor importancia, em ambito mundial, vivemos tambem uma crise no campo da organizacao do(a)s trabalhadore(a)s, imposta pelo chamado "fim do socialismo real", com a Queda do Muro de Berlim em 1989 e o fim da Uniao Sovietica, em 1991. Os impactos dessa crise, entre muitos e complexos aspectos, podem ser condensados em alguns elementos: a) crise no interior das organizacoes de esquerda; b) fragmentacao das organizacoes e entidades no campo do(a)s trabalhadore(a)s; c) busca pela reforma do sistema na perspectiva de "humanizacao" do capital, e nao mais pela sua superacao; e d) descrenca, por uma parte da esquerda, na possibilidade de superacao da ordem do capital, limitando a luta e as acoes politicas a reformas e lutas institucionais dentro da ordem, desencadeando uma priorizacao da luta institucional (parlamentar e governamental) em detrimento da organizacao autonoma do(a)s trabalhadore(a)s.

A crise estrutural do capitalismo vai exigir, no Brasil e em parte do mundo, uma reconfiguracao dos Estados Nacionais baseada em desoneracao do Estado, mercantilizacao das politicas publicas e recrudescimento do conservadorismo. Essa receita tem como pano de fundo o projeto neoliberal, que se apresenta com impactos distintos nos diferentes paises a partir das particularidades nacionais.

Os impactos dessa crise se fazem sentir de forma devastadora em paises de capitalismo tardio, como o Brasil, ja que somos um pais que nao fez sequer reformas, um dos ultimos paises do mundo a abolir a escravidao, com conquistas democraticas parciais. Como afirma Lima (2005, p. 4), seguimos um padrao que:

Estara expresso atraves de um 'imperialismo total' (Fernandes, 1975a) que (a) organiza a dominacao externa a partir de dentro e em todos os niveis da ordem social, desde o controle da natalidade, da comunicacao e o consumo de massa, ate a importacao macica de tecnologia e de uma concepcao de educacao voltada para a formacao da forca de trabalho e para a conformacao aos valores burgueses; (b) aprofunda as dificuldades para que os paises latino-americanos garantam seu crescimento economico em bases autonomas e, (c) estimula o fato de que nas economias perifericas, como ocorre com os interesses privados externos, os interesses privados internos estejam empenhados na exploracao do subdesenvolvimento como estrategia para garantir sua lucratividade. Nossa historia de pais colonizado, de "democracia" tutelada e gerida pelos interesses da burguesia, passa por mais de 20 anos de ditadura empresarial-civil-militar, e so em 1988 (ha menos de 30 anos) "conquista" uma Constituicao Federal (CF/88), que avanca em alguns direitos do(a)s trabalhadore(a)s (BRASIL, 1988).

Nesse sentido, tratar da educacao superior nessa conjuntura nos impoe fazer uma breve analise do momento politico que vivemos no Brasil, vinculado com o desenvolvimento capitalista internacional, em crise desde a decada de 1970. Como ja apontava Marx (2001), o capitalismo e um sistema politico-economico-social e cultural cuja existencia esta atrelada a crises ciclicas, que exigem sua reconfiguracao na forma de gestao do Estado e/ou da producao. As crises, segundo o autor, sao cada vez menos espacadas, aprofundando a pauperizacao da classe trabalhadora e as expressoes da questao social, nos termos de Iamamoto e Carvalho (1995).

A crise ciclica e estrutural do capitalismo impoe uma reconfiguracao do papel do Estado, de forma a atender as exigencias imediatas para a recuperacao do sistema capitalista, em especial a partir da tentativa de elevacao de suas taxas de lucro. A cada crise, alternativas no campo politico e economico sao gestadas, com rebatimentos importantes na vida social, cultural e politica da classe trabalhadora.

Ja foram construidas como alternativa a crise capitalista diferentes formas de gestao do Estado e da desigualdade social. Em alguns paises da Europa, como experiencia restrita, a partir da decada de 1950 se gestou um modelo de Estado "protetor", o Estado de Bem-Estar Social. Esse modelo buscou superar a crise capitalista da decada de 1930, repercutindo em varias partes do mundo, como um modelo almejado de Estado mais "humano", dentro da ordem do capital.

Na Europa, como no Brasil, inaugura-se, a...

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