Economia de mercado e a promoção do bem de todos no estado democrárico de direito

AutorDinaura Godinho Pimentel Gomes
CargoDoutora em Direito do Trabalho e Sindical pela Universidade Degli Studi di Roma ? LA SAPIENZA, Itália, com revalidação pela Universidade de São Paulo ? USP
Páginas167-185

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1. Introdução

Sob o impacto da globalização e do domínio da ideia de liberdade sem limites do mercado, gigantescas empresas multinacionais transformaram-se em protagonistas privilegiadas tendentes a enfraquecer a democracia dos Estados, mormente na América Latina. Provocam radicais transformações nas economias nacionais, a envolver o mundo do trabalho e a própria capacidade produtiva das empresas, tal como se veri?ca nas últimas décadas.

Em busca de seus próprios objetivos, esses grandes grupos provocam incessantemente a modi?cação das condições de produção e, com isso, geram sérios desequilíbrios econômicos nos países em desenvolvimento, inclusive sem a eles oferecer alternativas. Suas principais tendências têm sido voltadas a minimizar o Estado-nação, forçando-o a favorecer forte-mente e sem limites os interesses de tais conglomerados transnacionais, sob a hegemonia dos Estados Unidos e de sua liderança no comando do paradigma tecnológico.

É, assim, que a dominação da economia neoliberal provoca, hodiernamente, forte dispersão geográ?ca de empresas em quaisquer pontos do planeta, cada vez mais obrigadas a acompanhar elevado nível de competição na indústria, no comércio e na prestação de serviços sem fronteiras. Desse modo, ?cam inviabilizados, muitas vezes, projetos nacionais de investimento sobretudo das indústrias.

No entanto, tal realidade aponta, como sempre, a manifesta incapacidade do livre mercado de resolver suas próprias crises ?nanceiras e, mais ainda, os problemas sociais. E a quem cabe solução?

Justamente para a salvaguarda do próprio modelo capitalista, deriva dos poderes do Estado Democrático de Direito a e?caz capacidade de impor limitações para evitar abusos e assegurar a livre-concorrência. Tudo no sentido de fortalecer e ajustar o crescimento econômico direcionado ao alcance do progresso de toda sociedade e da promoção do bem de todos.

2. Transformações socioeconômicas de âmbito internacional a partir da Era dos Anos Dourados: avanços e retrocessos

É sabido que, depois da Grande Depressão de 19291, seguida da Segunda Grande Guerra,

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novas tendências surgiram em prol da formação de uma sociedade guiada por políticas keynesianas que formaram as bases do Estado do Bem-Estar Social (Welfare State).

O Estado passa a intervir mais na economia, não no sentido de enfraquecer, mas, sim, de aperfeiçoar o sistema capitalista, ao dar respaldo à livre-iniciativa mediante mecanismos de incentivos voltados ao crescimento econômico, o que possibilita aumento da demanda necessária à manutenção de pleno emprego.

Trata-se, pois, de um modelo de Estado “conhecido por sua ênfase à justiça redistributiva, por seus programas de inclusão social e pelo seu tradicional sistema de ?nanciamento previdenciário intergeracional baseado no princípio da solidariedade...”.2 A própria capacidade de crescimento, movida pela adoção do sistema capitalista, fomenta a introdução de novos métodos produtivos por meio de novas tecnologias e de novos mercados. Advém daí substancial redução dos níveis de pobreza e, por consequência, das crises ?nanceiras e de crédito. Tudo isso sob o comando do Estado de Bem-Estar Social.

Segundo José Eduardo Faria, trata-se, portanto, de um “tipo-ideal de Estado capaz de criar as condições para o investimento, controlar o curso da economia e dar às famílias a proteção necessária nas ‘contingências sociais’. Ou seja, de um Estado capaz de regular a demanda global, valorizando uma combinatória entre políticas ?scais, políticas monetárias de natureza expansionista, programas anticíclicos de gastos públicos e elevação de despesas com seguridade social (como é o caso de seguro-desemprego, aposentadorias e pensões, por exemplo), com o objetivo de viabilizar uma demanda efetiva próxima ao pleno emprego e, com isso garantir a segurança socioeconô-mica.3

Nesse contexto, assim transcorre a Era dos “anos dourados”, marcada por um capitalismo guiado por princípios democráticos de modo a propiciar avanço tecnológico e prosperidades sociais.

Eis o que António José Avelãs Nunes, Professor Catedrático da Faculdade de Direito de Coimbra, preleciona a respeito:

Os trinta anos imediatamente posteriores a 1945 proporcionaram, em especial na Europa e nos EUA, taxas de crescimento económico relativamente elevadas e níveis aceitáveis de desemprego sem pressões in?acionistas preocupantes. Estes resultados, associados às políticas de inspiração keynesiana, convenceram alguns de que a ciência económica tinha descoberto a ‘cura’ para os vícios que Keynes atribuíra ao capitalismo (a possibilidade de desemprego involuntário e as desigualdades muito acentuadas). Falou-se da ‘obsolescência dos ciclos económicos’ e celebrou-se a mirí?ca

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conquista do capitalismo post-cíclico ou capitalismos sem crises.4

A par disso, vem de?nida a polarização do planeta entre o bloco capitalista liderado pelos Estados Unidos da América e o bloco socialista liderado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Trata-se de uma divisão geopolítica no que concerne à ordem militar, política, ideológica, econômica e social em disputa pelo poder de in?uência perante o mundo. De qualquer forma, naqueles denominados “trinta anos da era de ouro” ou “trinta anos gloriosos”, nos países mais desenvolvidos busca-se e se obtém uma qualidade de vida estável, favorecida pelas altas taxas de crescimento, por sua vez aliadas aos crescentes aumentos salariais e à atuação positiva do Estado em prol da expansão e realização dos direitos sociais. Veri?ca-se um grande avanço na incorporação dos trabalhadores nas sociedades capitalistas, o que possibilita a adoção de mecanismos de integração social pela e?caz atuação sindical. Dá-se a formação de uma nova classe social afastada da antiga divisão con?ituosa. E tudo isso fortalece uma política de proteção do Estado assegurada pelos fundos de contribuição previdenciária.

Robert Castel, sociólogo francês, considera que tal período transcorrido até 1975 se destaca como a “apoteose da sociedade salarial”. Salienta que “a transformação decisiva que amadureceu ao longo dos anos 50 e 60 não é, pois, nem a homogeneização completa da sociedade, nem o deslocamento da alternativa revolucionária sobre um novo operador, a ‘nova classe operária’. O que se deu foi, sobretudo, a dissolução dessa alternativa revolucionária e a redistribuição da con?itualidade social conforme um modelo diferente daquele da sociedade de classes: a sociedade salarial”5.

Forma-se um círculo virtuoso entre crescimento econômico e correção das desigualdades sociais, o qual se rompe com o afastamento das regras de gerenciamento das relações econômicas e ?nanceiras entre os países mais industrializados, estabelecidas por ocasião dos acordos de Bretton Woods, ?rmados em 1944. Por consequência, a ordem econômica entra em colapso na década de setenta, sob o domínio da alta in?ação, mantendo orçamentos de?citários e estagnação econômica.

A propósito, John Mackey, um dos fundadores do movimento do Capitalismo Consciente, ao relatar as transformações ocorridas em grande parte do século XX, menciona que o período pode ser visto “como uma guerra intelectual travada entre duas ?loso?as sociais e econômicas opostas: o capitalismo de livre-iniciativa, baseado em mercados e pessoas livres, e o comunismo marcado pela ditadura e pelo controle econômico por parte do Estado”.

Por todos indicadores mensuráveis, o capitalismo ganhou a batalha. Social e economicamente, os Estados Unidos evoluíram bem mais do que a União Soviética, principal rival comunista. O mesmo aconteceu entre as duas Alemanhas, as duas Coreias, e com Taiwan, Hong Kong e Cingapura em relação à China6.

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Mais precisamente com a crise petrolífera — de 1973/74 e de 1978/79, que provoca a in?ação e a estagnação — a ordem econômica até então estabelecida revela-se insustentável, aprofundados os problemas de ?nanciamento estatal, diante da menor receita ?scal, o que inviabiliza a manutenção do gasto social nos moldes anteriormente estabelecidos. Ademais, diante de novos direcionamentos voltados à expansão do comércio internacional, aumenta a competição entre as empresas, que ainda são estimuladas à ?nanceirização do capital. Para os trabalhadores em geral resulta o aumento dos índices de desemprego e, com isso, o desequilíbrio social, mormente em face da redução das prestações sociais devidas pelo governo dos Estados.

Na sequência, expressivas mudanças no âmbito político, econômico e social provocam a destruição do muro de Berlim, em 9 de novembro de 1989, e a dissolução da União Soviética em 1991. A propósito, Anthony Giddens7, avalia que “a União Soviética, longe de superar os EUA, caiu a níveis drasticamente inferiores aos americanos, e por que a social-democracia defrontou suas próprias crises”. Para ele:
a teoria econômica do socialismo sempre foi inadequada, subestimando a capacidade do capitalismo inovar, adaptar e gerar uma produtividade crescente. O socialismo foi também incapaz de compreender o signi?cado dos mercados como fontes de informação, que fornecem dados essenciais a compradores e vendedores. Essas inadequações só se revelaram plenamente com a intensi?cação dos processos de globalização e de mudança tecnológica a partir da década de 1970.

Ao ?nal da década de 1990, a economia capitalista passa a enfrentar outra grande crise econômica. A partir de 1997, apresenta-se seu foco inicial na Tailândia para, depois, atingir a Coreia, Hong Kong, China e Japão, deixando, assim, de ser uma crise localizada apenas na Ásia...

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