Constituições econômicas no século XX e a constituição econômica brasileira contemporânea: o estado de exceção permanente no Brasil

AutorMaria Helena Ferreira Fonseca Faller - Ubaldo Cesar Balthazar
CargoGraduada em Direito pelas Faculdades Integradas Curitiba - Graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
Páginas362-423

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Introdução

A compreensão acerca da Constituição Econômica percorre, necessariamente, alguns caminhos atrelados à Teoria Constitucional. Tratar de Constituição Econômica no século XX impõe a abordagem da ordem jurídica da economia, do mundo do "dever ser". Com efeito, a preocupação do direito com a economia, nascida no século XX, não é sem propósito e surge de uma necessidade real de se garantir e possibilitar mudanças no campo econômico, a partir do momento em que este espaço tornou-se um problema.

O liberalismo do século XIX trouxe importantes conquistas no âmbito das liberdades. Contudo, foi cenário de uma assombrosa acumulação de direitos de propriedade em poucas mãos. As tensões aumentaram com o poder econômico nas mãos de poucos e o poder político mais distribuído em razão da democracia (BERCOVICI, 2004, p. 129).

A partir disso, no século XX, se altera o papel da Constituição Econômica de apenas retratar e garantir a ordem econômica existente, para tornar-se uma Constituição normativa, promotora e garantidora de profundas transformações na economia, entendidas necessárias com o advento do Constitucionalismo Social no século XX e da Teoria da Constituição Dirigente1.

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O que é inovador nesse tipo de Constituição não é a previsão de normas que disponham sobre o conteúdo econômico, mas é a positi-vação das tarefas a serem realizadas pelo Estado e pela sociedade no âmbito econômico, buscando atingir certos objetivos determinados, também, no texto constitucional (BERCOVICI, 2004, p. 39).

Estabelecer-se-á uma premissa para iniciar este debate, na esteira do que compreende Bercovici (2004, p. 40). Tem-se consciência de que as definições exclusivamente normativas de Constituição não determinam seu conceito, sua essência, que inclui - embora não se limite a eles - os célebres fatores reais de poder os quais, segundo Lassale (1987, p. 08), se constituem nas forças ativas que conformam as instituições jurídicas, que se transformam em direito quando colocadas em um papel. A grande contribuição de Lassale (1987, p. 08) foi demonstrar que as questões constitucionais são também questões políticas, questões de poder. No presente trabalho, não será aprofundada esta análise, embora se entenda que tal concepção é fundamental para a devida compreensão da Constituição Econômica.

A proposta de Bercovici (2005, p. 30), que ora adota-se, é de compreender e aplicar a Constituição Econômica como uma sistematização de dispositivos relativos à configuração jurídica da economia e à atuação do Estado no domínio econômico, voltada para a transformação das estruturas sociais, impondo tarefas a serem realizadas.

Sendo assim, no presente artigo se fará uma reflexão acerca do conceito de Constituição Econômica, sua origem e atual posição nas Constituições modernas, compreendidas a partir da perspectiva das Constituições Dirigentes.

Posteriormente, será realizada uma breve análise das particularidades presentes no Constitucionalismo Brasileiro, para possibilitar o enfrentamento das questões relativas a Constituição Econômica no Brasil. Por fim, serão abordadas as premissas teóricas acerca do Estado de

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Exceção permanente a que está submetido o Estado brasileiro devido às constantes crises econômicas, que justificam a suspensão constante das disposições da Constituição Econômica vigente.

1. A constituição econômica no século XX

Atribui-se a expressão "constituição económica" ao fisiocrata Baudeau, que com ela encabeçou um dos capítulos da sua Première Introduction à La Philosophie Économique (1771). Significava aí o conjunto dos preceitos jurídicos reguladores da "societé économique" (MOREIRA, 1979, p. 19).

Porém, foi na literatura econômica que a expressão em primeiro lugar obteve curso, mas com sentido diverso, significando o mesmo que estrutura econômica ou sistema econômico, ou seja, os elementos estruturais que determinam as leis e condicionam o processo de evolução da economia. Apesar desse lastro-teorético econômico, é - como em um retorno às origens - no plano jurídico-político que a expressão vem a conhecer fortuna (MOREIRA, 1979, p. 20).

Moreira (1979, p. 20) entende que é após a Primeira Guerra Mundial - marco de transição econômica e política do capitalismo - que o conceito de Constituição Econômica vai surgir com todo o vigor. Duas são as ideias que fundamentalmente o informaram: as de democracia econômica2 e de administração autônoma da economia:

A representação de que a democracia política, com o seu parlamento, os seus partidos, o seu sufrágio universal, os seus direitos fundamentais, não passa de ilusão quando as condições econômicas impedem o 'cidadão' de efetivamente fazer uso dos

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seus direitos, motiva a idéia de transformá-lo também em 'cidadão económico'. Assim como a revolução liberal tinha criado a cidadania política, era necessário agora atribuir a todos a 'cidadania económica'.

As Constituições elaboradas após o final da Primeira Guerra Mundial têm algumas características comuns: a declaração, ao lado dos tradicionais direitos individuais, dos chamados direitos sociais ou direitos de prestação, ligados ao princípio da igualdade material que dependem de prestações diretas ou indiretas do Estado para serem usufruídos pelos cidadãos (BERCOVICI, 2005, p. 13):

Estas novas Constituições são consideradas parte do novo 'constitucionalismo social' que se estabelece em boa parte dos Estados europeus e em alguns americanos. Em torno destas Constituições, adjetivadas de sociais, programáticas ou econômicas, vai se dar um intenso debate teórico e ideológico.

Bercovici (2005, p. 33) entende que a Constituição Econômica não é uma inovação do constitucionalismo social do século XX, mas está presente em todas as Constituições, inclusive nas liberais dos séculos XVIII e XIX. Todas as Constituições liberais possuíam disposições econômicas em seus textos, as quais buscavam sancionar o existente, garantindo os fundamentos do sistema econômico liberal, ao prever dispositivos que preservavam a liberdade de comércio, de indústria, a liberdade contratual e, fundamentalmente, os direitos de propriedade.

A existência de uma Constituição Econômica nas Constituições liberais pode ser demonstrada pela primeira Constituição moderna e última de modelo liberal ainda vigente: a Constituição norte-americana de 1787. A liberdade contratual, prevista na Constituição Econômica de

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1787 tornou possível o desenvolvimento capitalista nos Estados Unidos nas formas em que este ocorreu (BERCOVICI, 2005, p. 33).

O debate em torno das Constituições Econômicas intensificou-se no século XX com a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919. Formalmente, as Constituições do século XX diferenciam-se das anteriores por, entre outros motivos, conterem uma expressão formal de Constituição Econômica, com uma estrutura mais ou menos sistematizada em um capítulo próprio (BERCOVICI, 2005, p. 33).

A diferença essencial que surge a partir do constitucionalismo social do século XX e que vai marcar o debate sobre a Constituição Econômica é o fato de que estas Constituições não pretendem mais receber a estrutura econômica existente, mas alterá-la (BERCOVICI, 2005, p. 33):

[...] Elas positivam tarefas e políticas a serem realizadas no domínio econômico e social para atingir certos objetivos. A ordem econômica destas Constituições é programática, dirigente. A Constituição econômica que conhecemos surge quando a estrutura econômica se revela problemática, quando cai a crença na harmonia preestabelecida do mercado. Ela quer uma nova ordem econômica; quer alterar a ordem econômica existente, rejeitando o mito da auto-regulação do mercado.

A ideia de Constituição Econômica do século XX tinha precisamente por fim efetivar esses objetivos de reordenação econômica, por meio do estabelecimento de uma constituição jurídica da economia que rompesse com a realidade do ancien regime e negasse a ordem econômica liberal, a favor da representação de uma nova ordem econômica (MOREIRA, 1979, p. 22).

Moreira (1979, p. 88) nomina este conjunto de disposições contidas no documento constitucional, destinadas a regular a vida eco-

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nômica de Constituição Econômica formal. A Constituição Econômica material seria definida segundo um critério econômico, abrangendo todas as normas e instituições jurídicas pertinentes segundo esse critério, independentemente da sua fonte constitucional ou legal (ou até regulamentar). Já a Constituição Econômica formal seria definida pelo simples critério da presença de disposições econômicas no documento constitucional.

Efetivamente, segundo Moreira (1979, p. 90), é certo que ao capitalismo como sistema econômico é inerente uma Constituição Econômica formal, sistematizada. Porém, ela só obteve grau constitucional formal muito tardiamente: a Constituição de Weimar de 1919 seria aquela em que, pela primeira vez3, a Constituição Econômica alcançou lugar na Constituição:

É essa idéia que parece ganhar confirmação quando se tenha em conta o que, nesse aspecto, separa as novas constituições em relação às oitocentistas. Em primeira análise, o que as distingue é desde logo a assunção, nas constituições modernas, do econômico como material constitucionalizável e a atribuição a ele de um 'quadro de ordem', isto é, a sua estruturação jurídica mais ou menos sistemática, abrangendo todos os domínios do econômico. [...] Esse quadro de ordem não pretende receber a estrutura econômica existente - ao invés, pretende alterá-la. O que caracteriza essa ordem constitucional da economia...

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