Células-tronco embrionárias: uma discussão em prol da vida humana

Autor1.Lucas Eduardo de Castro Burin - 2.Astrid Heringer
Cargo1. Bacharel em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - 2 Orientadora, doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca, Espanha; Mestre em Integração Latino-americana;
Páginas227-249

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Introdução

O presente1 estudo tem como objetivo tecer considerações acerca da Lei n° 11.105/2005, denominada Lei de Biossegurança, e da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADI) n° 3510, proposta pelo ex-Procurador-Geral daPage 228República Cláudio Fonteles, para que, conhecendo os dois pólos processuais, possa se analisar o caminho seguido pelos ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento sobre a constitucionalidade do uso de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapia no Brasil.

Desse modo, serão expostos aspectos relevantes sobre a Lei de Biossegurança, principalmente, no que se refere ao seu artigo 5°, uma vez que tal dispositivo foi o alvo de toda a discussão travada desde 2005 até o julgamento final, em 29 de maio de 2008.

No mais, abordar-se-á a ADI n° 3510 em seus elementos mais essenciais, com o intuito de demonstrar quais os meios empregados na tentativa de convencer a Suprema Corte brasileira de que utilizar embriões em pesquisas científicas constitui um desrespeito à Constituição.

Por fim, adentrar-se-á no ponto capaz de responder ao questionamento desta pesquisa, ou seja, a análise dos argumentos empregados pelos onze ministros a fim de solucionar o debate entre a proteção da vida e o progresso científico.

1 A lei 11 105/05 e seu artigo 5°

A evolução das ciências, em especial da biotecnologia, traz consigo, além da possibilidade de avanços e conquistas significativas às diferentes esferas da sociedade, a necessidade de criação de normas jurídicas específicas que regulem a matéria e estabeleçam parâmetros precisos, capazes de orientar o agir dos sujeitos envolvidos nesse processo de modernização das técnicas humanas. Nesse sentido, foi sancionada, em 24 de março de 2005, a Lei nº 11.105, mais conhecida como Lei de Biossegurança, à qual se atribuiu a árdua missão de compatibilizar o desenvolvimento biotecnológico no Brasil com a segurança da vida humana e a preservação do meio ambiente.

A função do referido diploma legal resta bem definida em seu preâmbulo, o qual estabelece:

Regulamenta os incisos II, IV e V do § 1° do art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados - OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança - CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança - CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança - PNB, revoga a Lei n° 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a medida provisóriaPage 2292.161-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5°, 6°, 7°, 8°, 9°, 10 e 16 da Lei n° 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providências4.

Composta de 42 artigos, a Lei de Biossegurança engloba temas de grande impacto social, desde regras concernentes a transgenia, até o aqui analisado, células-tronco embrionárias 5. Desse modo, prevê uma série de conceitos com vistas a propiciar um entendimento claro da matéria, como o de engenharia genética, ácido desoxirribonucléico (ADN), ácido ribonucléico (ARN), organismo geneticamente modificado, clonagem, clonagem reprodutiva e terapêutica, células-tronco embrionárias, entre outros. Também trata da criação de órgãos de assessoramento ligados à Presidência da República para implantação da Política Nacional de Biossegurança; amplia competências de entidades já existentes como a CTNBio; estabelece a responsabilidade objetiva daqueles que causarem danos ao homem e ao meio -ambiente em razão da não observância das regras legais e comina penas, de 01 ano de detenção a 08 anos de reclusão, para os que praticarem algumas das condutas vedadas pela lei6.

Mesmo sendo um texto relativamente curto aos olhos de quem lê, da aprovação do projeto até a sanção presidencial da norma, transcorreu-se um conturbado processo legislativo, com aproximadamente dois anos de debates, reformas e emendas, demonstrando, desde já, a complexidade do assunto que estava em cena.

De forma resumida, o projeto de lei 2403/03 (PL 2403/03) partiu do governo federal, inicialmente como forma de regulamentar o plantio de sementes transgênicas, sendo adicionada, estranhamente, a questão das células-tronco embrionárias. Enviado à Câmara dos Deputados, o relator emitiu parecer favorável, no entanto, ocorreu uma substituição na relatoria, vindo outro deputado assumir a função, o qual, cedendo à pressão das bancadas religiosas, aprovou o cultivo de transgênicos e vetou as pesquisas com células embrionárias, bem como a clonagem terapêutica. No Senado, em virtude de diversas manifestações em prol das pesquisas científicas, foram realizadas audiências públicas com a participação ativa de médicos, cientistas e doentes, para, assim, dirimir possíveis dúvidas e subsidiar os senadores com argumentos aptos a comprovar a necessidade de aprovação do projeto, o que, em parte ocorreu, sendo vetada, apenas, a clonagem terapêutica. De volta à Câmara, houve, ainda, diversas tentativas de vetar o artigo 5° do projeto, Page 230todavia, restaram infrutíferas, culminando esse intenso processo com a sanção presidencial, após poucos vetos, insuficientes para alterar profundamente o mérito da lei7.

Embora aprovada, a Lei de Biossegurança continuou sendo considerada por muitos como algo impensado e imaturo, resultado de um conjunto de erros e falta de informações que, apesar de aclamada como um benefício, revelaria com o passar do tempo as lacunas deixadas pelo legislador, principalmente no trato dado aos embriões.

Crepaldi e Lemes ao desenvolverem um estudo acerca da Lei de Biossegurança, preferem denominá-la de “Lei do Biocrime”, uma vez que sua discussão e votação não levou em consideração o protesto de milhares de cidadãos brasileiros, mas deixou dominar-se pelo poder da indústria biotecnológica e pelos insubsistentes motivos trazidos por profissionais da área, demonstrando, assim, a inexperiência dos parlamentares e o caráter de terceiro mundo assumido pelo Poder Legislativo nacional. Continuam a desmerecer a lei, quando comparam o tratamento dispensado ao tema na Suíça e em Portugal e o conferido no Brasil, explicitando que naqueles o governo, antes de sancionar diploma semelhante, realizou amplo debate público, com plebiscito e elaboração de documentos informativos, para que a população tivesse voz e conhecimento real do que estava em jogo8.

Complementando a oposição à Lei de Biossegurança, Costa refere acerca de seu caráter fragmentário:

[...] em tudo avesso à noção de sistema que deve presidir a redação legislativa – é devido, por sua vez, a uma série de fatores, uns devidos às deficiências técnicas, outros atribuíveis às injunções que comandam a política nesse País. Partiu-se da regulamentação dos transgênicos, em especial o plantio de semente transgênica, inicialmente restringida pela Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, depois autorizada, em parte, por Medida Provisória, para se alcançar a regulamentação de técnicas de reprodução humana assistida e regulamentar o CTNBio, tentando-se agradar a gregos e troianos ePage 231enfiar no mesmo saco - como se fossem produtos de contrabando – temas que estão a merecer tratamento mais responsável9.

Feitas as críticas, cabe agora direcionar o exame da lei às disposições trazidas a respeito da utilização de células-tronco embrionárias, ou seja, chega o momento de conhecer a fonte de tanta controvérsia, o tão aludido artigo 5°. Por denotar tamanha importância e constituir ponto-chave deste trabalho, cumpre, antes de tecer qualquer comentário ao seu conteúdo, favorável ou desfavorável, citá-lo, ipsis literis:

Art. 5º. É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: I - sejam embriões inviáveis; ou II - sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta lei, ou que, já congelados na data da publicação dest a lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data do congelamento. § 1°. Em qualquer caso é necessário o consentimento dos genitores. § 2°. Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa. § 3°. É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei n° 9.434, de 4 de fevereiro de 199710

Como visto, a questão das células embrionárias ganhou corpo no ordenamento jurídico brasileiro por meio de um único dispositivo, colocado, coincidentemente, na mesma posição ordinal daquele utilizado por seus opositores como principal arma para sua eliminação, qual seja, o artigo 5º da Constituição Federal. Deixando o conflito de artigos quintos para mais adiante, Barroso, ao expor sobre a sistemática da Lei de Biossegurança, considera bem resolvida a forma como as células-tronco embrionárias foram tratadas, uma vez que não houve apenas uma simples permissão, mas toda uma listagem de requisitos a serem seguidos, sem os quais se tornaria inexequível qualquer tentativa de pesquisa, demonstrando, assim, que a disciplina da matéria foi marcada pela prudência e pelaPage 232moderação, em nada violando a vida e a dignidade humana, ao contrário, promovendo de maneira adequada tais valores11.

O mesmo autor ressalta, ainda, a série de proibições elencadas no corpo da lei, como a impossibilidade de comercialização de embriões, células e tecidos, sob pena de 03 a 08 anos de reclusão e multa; a vedação da clonagem de seres humanos e da engenharia genética em células germinais humanas, zigotos ou embriões humanos...

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